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Peças refletem clima político e discutem autoritarismo e falta de diálogo

Espetáculos abordam violência cotidiana, além da relativização da tortura e da ditadura brasileira

Cena da peça

Cena da peça "11 Selvagens", do diretor e dramaturgo Pedro Granato Divulgação

Maria Luísa Barsanelli
São Paulo

Escarafunchando aqui e ali no dia a dia brasileiro, o Grupo Galpão se deparou com uma aura em ruína.

Colheu alguns cacos dessa sociedade em pedaços e construiu “Outros”, espetáculo que a trupe estreia nesta semana em sua sede, o Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte. 

Trata-se de um retrato do atual clima político do país, em especial de uma sociedade sem diálogo, em que muitos só escutam o que querem.

É uma temática que vem permeando produções recentes, embebidas nas tensões sociais e políticas de um Brasil pré-eleição e num momento em que se discute uma ascensão do autoritarismo e de ideologias extremistas.

Nesse último ponto toca “Roda Morta”, que a Cia. Teatro do Perverto estreia em São Paulo. Numa narrativa farsesca, traça um panorama da história brasileira desde o regime militar. E imagina que a ditadura nunca tenha acabado por completo, rondando até hoje como um fantasma.

“Ela é evocada em especial em momentos de tensão política”, diz o dramaturgo João Mostazo, lembrando movimentos recentes que clamam pela intervenção militar.

“Para a peça, muito mais importante do que o histórico da ditadura, foi pensar como ela continua no nosso dia a dia”, continua Clayton Mariano, que dirige a montagem. “E infelizmente ela ainda está. Temos nitidamente um candidato à presidência [Jair Bolsonaro, do PSL] que louva este momento do país.”

O período ainda é relembrado em “Memórias do Esquecimento”, adaptação do livro homônimo de Flavio Tavares, no qual o jornalista conta em minúcias as torturas sofridas no regime militar —foi preso três vezes entre 1964 e 1969, exilou-se no México e depois, no Uruguai, foi sequestrado pela repressão do país.

Bruce Gomlevsky em “Memórias do Esquecimento”, baseado na história do jornalista Flavio Tavares
Bruce Gomlevsky em “Memórias do Esquecimento”, baseado na história do jornalista Flavio Tavares - Divulgação

“É importante e contundente falar disso neste momento, quando há gente tentando revisar a história, relativizar a tortura, pedir a volta da ditadura”, afirma Bruce Gomlevsky, que dirige e interpreta a versão teatral. “Vendo essa história, concluímos que não sabemos bem como foram aqueles anos de ditadura.”

Para entender melhor o que é esse pensamento de hoje, o Galpão foi às ruas. Criou uma série de performances, de cunho afetivo, com os passantes das vias de Belo Horizonte. 

Numa, um dos atores fazia um convite a um café, numa mesinha na calçada. Noutra, uma integrante se oferecia a pregar botões e consertar rasgos em troca de uma conversa. Um outro chamava pessoas a contarem suas histórias.

“Outros” é uma continuação de “Nós” (2016), ambas dirigidas por Marcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro. Se a montagem anterior estava inserida no contexto do impeachment de Dilma Rousseff e questionava qual seria, a partir de então, o caminho do país, a atual busca entender as nossas divergências.

“A gente se colocou muito numa posição de escuta, de entender os outros”, diz Eduardo Moreira, ator e um dos fundadores do Galpão. “Acho que as pessoas estão precisando disso, de serem ouvidas.”

“E é intenso, porque você escuta tudo”, continua Abreu. "Pode ser violento, revela a sociedade em todos seus aspectos.”

É também no desentendimento que o diretor e dramaturgo Pedro Granato se baseou para seu “11 Selvagens”. Narra uma série de episódios cotidianos, em princípio banais, que escalonam e chegam à violência. Seja a briga por um assento, que termina com pessoas a tapas, seja um encontro amoroso que acaba num estupro.

A peça estreou no ano passado, envolta no clima de manifestações que ocupam o Brasil desde 2013, mas foi ganhando contornos mais densos com o acirrar das tensões. 

“Aquilo que tratávamos como exagero, como situações de homofobia, violência contra a mulher, discussão sobre o fim do 13º salário, agora é constatação”, diz Granato, que se baseou em obras sobre a semente do fascismo, como “Terror e Miséria no Terceiro Reich”, de Bertolt Brecht.

“É a sensação de estar fotografando a onda que está te engolindo”, comenta o encenador sobre a trajetória da peça, agora em sua quinta temporada. Para o ano que vem, ele prepara uma espécie de continuação do assunto, intitulada “Distopia Brasil”.

Mas a tensão nem sempre se traduz em cena como violência. No caso de “Outros”, o Galpão busca a abstração, algo próximo da performance.

O espetáculo inicia bastante musicado. O segundo terço é composto de uma série de falas entrecortadas, como se fossem ecos do que se ouve nas ruas. Já a última parte é toda apresentada em silêncio.

“A montagem mostra um esgotamento da capacidade da palavra, um excesso de informação e de imagens, que impedem a nossa escuta”, afirma o diretor Marcio Abreu.

O silêncio também permeia a versão de Bruce Gomlevsky para “Tartufo”, que ele encena em paralelo ao monólogo “Memórias do Esquecimento” no Teatro Poeirinha, no Rio.

Para retratar o charlatão religioso do clássico de Molière, o diretor decidiu fugir do realismo e trazer elementos do expressionismo alemão, usando apenas imagens para trazer referência atuais. Em sua versão, Tartufo, como o usurpador que é, transforma-se no presidente da República.

Uma alusão, afirma ele, a como regimes autoritários hoje têm chegado ao poder pelo voto, por vias democráticas.

“Roda Morta”, da Cia. Teatro do Perverto, é outra montagem que foge do realismo. Não se trata de um retrato documental da ditadura, mas de uma farsa repleta de clichês.

“Vivemos essa situação sem sentido, em que grandes narrativas políticas parecem não ter mais lugar ou compromisso com a verdade”, diz o dramaturgo João Mostazo. 

Com as fórmulas, artistas dizem ter tirado reações efusivas do público. “As pessoas se emocionam muito, a gente termina [‘11 Selvagens’] com elenco e plateia chorando, se abraçando”, conta Granato.

Ao fim de “Tartufo”, segundo Gomlevsky, “as pessoas saem gritando, dizem ‘ele não!’ [contra Bolsonaro]. A peça não é um ataque a um ou outro candidato, mas as pessoas identificam essas relações”.

O palco serviria, assim, de lugar de encontro, e também de catarse. “Nessa polarização em que estamos vivendo, a gente não está conseguindo debater democraticamente”, comenta Gomlevsky. “O teatro acaba sendo uma ferramenta para essa discussão.”

 

11 Selvagens

CCSP, r. Vergueiro, 1.000, São Paulo. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 19h. Até 27/10. Ingr.: R$ 30. 16 anos


Memórias do Esquecimento

Teatro Poeirinha, r. São João Batista, 104, Rio. Qui. a sáb., às 21h. Dom,. ter. e qua., às às 19h. Até 28/10. Ingr.: R$ 50 a R$ 60. 16 anos


Outros

Galpão Cine Horto, r. Pitangui, 3.613, Belo Horizonte. Qua. a sáb., às 21h, dom., às 19h. De 18/10 a 18/11. Ingr.: R$ 40. 16 anos


Roda Morta

Teatro Pequeno Ato, r. Dr. Teodoro Baima, 78, São Paulo. Qui. e sex., às 21h. De 18/10 a 29/11. Ingr.: R$ 40. 16 anos


Um Tartufo

Teatro Poeirinha, r. São João Batista, 104, Rio. Ter. a qui., às 19h. Até 24/10. Ingr.: R$ 50 a R$ 60. 14 anos

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