Descrição de chapéu

Com cara de cinema, adaptação de 'A Amiga Genial' mantém espírito da obra de Ferrante

Pode ser que faltem atrativos para aqueles que não tenham um amor prévio pelas personagens

Francesca Angiolillo
São Paulo

A julgar pelo primeiro episódio, disponível no Brasil a partir da noite deste domingo (25), é possível dizer que “My Brilliant Friend” tem potencial para produzir, no mundo das séries, o mesmo abalo que a obra em que se origina, “A Amiga Genial”, causou no campo literário.

Assim como o livro de Elena Ferrante fisga o leitor sem lançar mão de formalismos, dentro das convenções realistas e atendo-se à narrativa, a série produzida pela HBO e dirigida por Saverio Costanzo se calca no bom conhecimento da arte cinematográfica, sem pirotecnias e sem artimanhas clássicas da teledramaturgia.

Dito isto, é preciso começar destacando a escolha das meninas que emprestam a carne a Elena, a Lenu, e a Raffaella, a Lila, respectivamente Elisa del Genio e Ludovica Nasti.

Elas são em tudo superiores ao resto do elenco, que, se não está mal, parece ter a função principal de dar relevo à atuação das meninas —o que talvez seja não um defeito, mas uma escolha da direção para ressaltar sua centralidade.

Resulta daí que os personagens secundários pareçam pouco delineados e menos humanos que a dupla protagonista.

Agradece-se a sobriedade geral —era de temer um pouco a forma como se retratariam, por exemplo, os episódios em que Lila, ao se concentrar ou ao sentir-se tensa, vê o mundo se desfocar, perder as margens.

Felizmente, não se cede à tentação de efeitos especiais, deixando que a representação dessas experiências se limite ao plano da atuação, na forma de um ligeiro tremor e um franzir dos olhos de Nasti.

O único mal de que padece a “My Brilliant Friend” é aquele que acomete qualquer adaptação literária: o grau de condensação que o exercício exige sempre deixará alguma insatisfação no espectador que antes foi leitor.

É inevitável tecer comparações, e o que se diz numa linha de texto muitas vezes não cabe nem em vários minutos de tela.

Assim, mesmo se o episódio de estreia escassamente cobre 60 páginas do primeiro livro da tetralogia de Ferrante, a sensação é de que muito ficou de fora ainda que, de modo geral, o espírito esteja preservado.

Contudo, tendo a série chegado ao Brasil três anos depois de “A Amiga Genial”, é possível que mesmo os fãs apaixonados já não guardem na mente tantos detalhes e, assim, fiquem satisfeitos com o que veem.

Por um lado, a mise-en-scène de Costanzo é bastante eficaz ao retratar o ambiente de violência que domina a infância de Lenu e Lila, sem abusar. Com concisão e sem excessos gráficos, marca o tom das relações no bairro onde vivem.

Por outro, há toda uma construção desse ambiente que, no livro, não se baseia em descrições de espaços e que, na série, não encontra maneira de se reproduzir.

Por exemplo, as várias crendices sobre a morte que Elena, a narradora, recorda e que ajudam a definir a população do bairro. Ou mesmo a construção de como a relação entre as duas meninas se estabelece e que, na tela, parece um tanto abrupta.

No trecho do livro reproduzido, a ligação que as une é mais evoluída do que o que vemos na adaptação —graças ao fato de que o que são episódios repetidos na narração, como as batalhas na rua, se tornam eventos isolados na trama televisiva.

É preciso dizer, também, que tudo surge um tanto quanto arrumadinho demais; a miséria, no livro, era mais ostensiva, a vida mais caótica do que aquela que se desenrola em prédios em tons de ocre e verde, nas ruas retas, a cara de cenário recém-pintado para parecer velho.

Com generosidade, porém, pode-se considerar também isto uma opção, feita para frisar que estamos diante de um artefato, uma história duas vezes recontada —primeiro, pela narradora do livro; depois, pela adaptação.

Não estamos, afinal, diante do real, mas de uma história recordada e recriada.

Fica no entanto a dúvida a respeito de quantos fãs não leitores a série pode angariar.

Os que amavam Lenu e Lila devem estar contentes por vê-las voltar ao seu convívio e, talvez, ganhem até algum prazer em redescobri-las um pouco mudadas, quase como se tivessem o prazer de vê-las pela primeira vez.

Mas pode ser que faltem atrativos para aqueles que não tenham um amor prévio pelas personagens.

Há poucos diálogos e bastante narração; a trama da amizade entre duas meninas crescendo num meio hostil, de cara, não se abre em subtramas que permitam ao espectador se perguntar o que será que vai acontecer.

Deve, assim, capturar os curiosos que gostem de cinema mais que de TV e não sintam falta de estratégias às quais nos acostumamos nestes tempos em que os produtos seriados nos impõem outra forma de lidar com o ritmo narrativo.

A maior concessão feita aos códigos das séries é a escolha por manter o título em inglês. É uma opção inconcebível e um tanto jeca —ainda mais considerando que não é nem mesmo um título original— e mercadologicamente inexplicável, uma vez que os livros, também aqui, conquistaram multidões.

'My Brilliant Friend' - Ep. 1 'The Dolls'

  • Quando Episódios consecutivos vão ao ar aos domingos e segundas, às 22h, até 17/12. Reprises ter (27) às 16h50, qua (28) às 14h30, qui (29) às 21h e sáb (1) às 11h.
  • Onde disponível no HBOGo

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