Filme 'Em Pedaços' articula política e psicologia ao mostrar incapacidade de superar a dor

Vencedor do Globo de Ouro retrata drama de alemã que perde marido turco e filho em atentado

Cena do filme 'Em Pedaços', de Fatih Akin, com a atriz Diane Kruger
Cena do filme 'Em Pedaços', de Fatih Akin, com a atriz Diane Kruger - Divulgação
Philippe Scerb
São Paulo

“Do ponto de vista político, a luta sempre continua. Do ponto de vista individual, nem todas. Há um limite para a nossa capacidade de elaborar e resolver qualquer dor, qualquer perda.” Essa é a conclusão que o psicanalista Julio Frochtengarten tira do filme “Em Pedaços”, do diretor alemão Fatih Akin.

Frochtengarten, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, participou, ao lado da jornalista colaboradora da Folha Beatriz Peres, de debate que se seguiu à sessão do longa na quarta-feira (31), na Cinemateca Brasileira. O evento integrou o quarto módulo do Ciclo de Cinema e Psicanálise, cujo tema é o “Mal-estar na civilização e distopia”.

“Em Pedaços”, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira em 2017, retrata o drama de uma alemã que perde o marido turco e o filho pequeno em um atentado na cidade de Hamburgo, na Alemanha. Em meio ao desespero causado pela perda, o longa acompanha sua difícil luta por reparação.

A forma sofisticada com que o filme aborda relações sociais ligadas ao nacionalismo e a seus efeitos de ordem emocional contrasta, na opinião de Frochtengarten, com o ambiente brasileiro contemporâneo. Durante uma disputa eleitoral marcada pelo ódio e pelo medo, teríamos experimentado um achatamento de toda a vida emocional.

“Estamos lidando com as questões de forma rasa, o que é normal em situações de ameaça de totalitarismo. O filme escapa disso ao articular política e psicologia de maneira rica e complexa”, afirmou o psicanalista.

Para Peres, é importante ter em mente a história do diretor para entender o longa. "Em Pedaços" é o terceiro filme em que Fatih Akin, nascido em Hamburgo e filho de pais turcos, discute a discriminação e os ataques sofridos pela comunidade de origem estrangeira na Alemanha.

O diretor tem figurado nas últimas listas de ameaçados pelas organizações neonazistas do país em função de seus filmes e seu posicionamento político. Nas palavras de Akin, reproduzidas por Peres, “é sinal de que estou fazendo a coisa certa”.

A ficção, então, se aproxima da realidade para contar a história dos atentados cometidos por neonazistas alemães contra turcos no começo dos anos 2000. Segundo a jornalista, a tentativa da polícia, no filme, de creditar o ataque a disputas ligadas ao tráfico de drogas aconteceu também em casos reais.

É a conivência das instituições do Estado com o neonazismo que leva a protagonista ao desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Trata-se, segundo Frochtengarten, de uma tentativa desesperada de dar destino àquela dor, que parece intolerável e cuja evolução se confunde com os movimentos do filme.

Na opinião da psicanalista Luciana Saddi, que mediou o debate, quando a queixa da protagonista é recusada pela Justiça, que absolve os responsáveis pelo atentado, lhe sobra apenas o ódio. “A vingança aparece mais como sintoma do que como luto para curar a dor de alguém que está em pedaços. Mas faz apenas agravá-la.”

Sigmund Freud discute, nos seus últimos trabalhos, o fato de convivermos com sentimentos opostos o tempo todo, lembrou Frochtengarten. No livro “O Mal-Estar Na Civilização”, por exemplo, ele aborda a dificuldade da felicidade e se pergunta como o homem pode ser tão violento —violência e ambiguidade que estão presentes na última cena do filme, em que a protagonista é, ao mesmo tempo, poderosa e impotente.

Segundo Peres, Akin afirmou ser fruto da globalização, antes de lamentar: “A globalização nos fez temer uns aos outros”.

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Sociedade Amigos da Cinemateca, com o apoio da Folha.

O próximo encontro acontecerá no dia 7 de novembro às 19h, com a exibição do filme "Relatos Selvagens", na Cinemateca (largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, São Paulo). É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h.

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