Filmes do Mix Brasil abordam repressão sexual e exposição do corpo

Longa francês 'Faca no Coração' e o brasileiro 'Tinta Bruta' são destaques

Pierre Emö, Félix Maritaud e Jérémy Benkemoun em cena de 'Faca no Coração', de Yann Gonzalez

Pierre Emö, Félix Maritaud e Jérémy Benkemoun em cena de 'Faca no Coração', de Yann Gonzalez Divulgação

Guilherme Genestreti
São Paulo

O êxtase pulsa na mesma batida que a morte em “Faca no Coração”. No filme do francês Yann Gonzalez, um espasmo pode ser reflexo tanto das estocadas do sexo quanto das punhaladas de um assassino à espreita. 

É inevitável pensar na Aids como metáfora. A trama acompanha um serial killer que seduz e mata homossexuais, atores de certa produtora de filmes pornô na Paris do final da década de 1970.

Já “Tinta Bruta”, dos brasileiros Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, propõe a redenção do corpo. Pedro (Shico Menegat) é um jovem introvertido que passa tintas fluorescentes na pele e se despe para anônimos na internet.

Montagem com Vanessa Paradis em cena de 'Faca no Coração' (no alto) e Shico Menegat em cena de 'Tinta Bruta', de Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon
Montagem com Vanessa Paradis em cena de 'Faca no Coração' (no alto) e Shico Menegat em cena de 'Tinta Bruta', de Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon - Divulgação

Em ambos os casos, repressão sexual e exposição do corpo são forças em eterno combate. Os dois longas são destaque do Mix Brasil, maior festival de cultura LGBT do país, que começa nesta quinta em São Paulo com mais de 100 filmes, shows, debates e peças.

Gonzalez, que disputou a Palma de Ouro em Cannes por “Faca no Coração”, nota alguma semelhança entre o pornô gay dos anos 70, que despontou pós-revolução sexual, e o cinema experimental de Warhol, que se esbaldava nas curvas de Joe Dallesandro.

“Vêm do mesmo tipo de pessoa, outsiders que confrontavam a norma e viam a utopia erótica como um manifesto político”, diz, por telefone.

O cineasta de 41 anos se diz fascinado por uma dessas pioneiras, Anne-Marie Tensi, “lésbica, alcoólatra, violenta, que vivia cercada por homens gays” e que produziu dezenas de filmes adultos na França.

“Quem atuava neles eram rebeldes, jovens ‘junkies’, prostitutos que ganhavam troco fazendo amor na frente das câmeras”, diz. “Algumas dessas obras são poéticas, melancólicas, quase como se antevissem o pesadelo sexual da Aids.”

Tensi foi a inspiração para a protagonista de “Faca no Coração”, interpretada por Vanessa Paradis. Enquanto a personagem rumina um pé na bunda, dado pela mulher que edita suas produções, ela continua na labuta tocando obras como “Homocida”, “Fúria Anal” e extraindo seu elenco de canteiros de obra. 

Os atores desses filmes, brutamontes ou efebos, vão morrendo um a um, exterminados por um maníaco que os encontra em ‘dark rooms’ de boates e casas sadomasoquistas. É a senha para que o diretor despeje outra de suas referências estéticas, o “giallo”, gênero do cinema italiano marcado por muito sangue e sexo.

“O obsceno e monstruoso são catárticos para mim”, diz Gonzalez, que cresceu vendo filmes de terror de John Carpenter, lotados de anti-heróis e criaturas desajustadas. “Ter visto aquilo enquanto eu me entendia como gay ajudou a explorar as minhas fantasias.”

Anne, a explosiva personagem de Paradis, é uma mulher intensa, cercada por rapazes seminus que não são caracterizadas com a mesma complexidade que ela —inversão dos papéis sexuais se considerada a tradição cinematográfica.

Ela circula por ruas parisienses que ganham as cores azuladas e arroxeadas do néon. “Toda aquela eletricidade é muito cinematográfica”, diz o diretor, que incrementou a sensação de perigo do roteiro enquanto marchas em prol da família e do casamento tradicionais tomavam a capital. 

“Foi horrível ver crianças gritando palavras de ódio. Me fez pesar a mão na violência.”

O som que acompanha Anne noite adentro é o de uma trilha marcada pelo uso de sintetizadores —préstimo do M83, um dos grandes nomes da música eletrônica francesa e que tem no irmão de Gonzalez um de seus fundadores. 

No fundo, resume o diretor, é um filme sobre “duas formas de raiva”, a que desperta da paixão frustrada e a que descamba em assassinato. Mais uma vez, ele traz à tona os filmes de terror a que assistiu na adolescência. “Me fizeram crer que amor tem tudo a ver com morte”, brinca. 

A raiva, que permeia a obra de Gonzalez, também canalizou a criação do drama “Tinta Bruta”, segundo o gaúcho Marcio Reolon, um de seus diretores. Ele diz que a onda conservadora na política em anos recentes “injetou o desespero” que molda o filme. 

A obra engrossa a seleção nacional do Mix Brasil, que neste ano criou uma nova seção para dar conta do aumento na inscrição de títulos brasileiros, quase metade com diretoras mulheres, segundo João Federici, curador da programação.

Depois do festival, “Tinta Bruta” entra em cartaz em circuito a partir do próximo dia 6, a preços populares, dentro da programação da Sessão Vitrine Petrobras.

“O momento por que passa o país sublinhou a personalidade do Pedro”, conta Filipe Matzembacher, o outro diretor, citando o protagonista, que reage às afrontas. “Ele tem uma vida difícil, mas não aceita o papel de vítima.”

Quando a história começa, o personagem principal é um um rapaz solitário e sociofóbico que responde a um processo por ter ferido outro garoto. 

Sem nenhuma conexão no mundo real, exceto a irmã que está de partida, Pedro é célebre na internet. Conhecido como GarotoNeon, ele se pinta e, no escuro do quarto, exibe sua nudez em sites por aí.

“Sua rede de afetos se desfaz, mas é pela internet que ele consegue exercer uma sexualidade que é cerceada”, diz Matzembacher, de 30 anos. 

A premissa tem a ver com Porto Alegre, cidade dos diretores e onde se passa a obra.

“Depois da adolescência, muita gente sai de lá e vai morar em outro lugar”, diz Reolon. “Com a distância, o contato que fica é via redes sociais. Ali, cada um filtra o que expõe e se comunica por meio de personas idealizadas”, completa o diretor de 33 anos.

A capital gaúcha tem na trama importância central, exposta em prédios cinzentos lotados de janelas alheias à violência homofóbica nas ruas.

“Tinta Bruta” estreou no Festival de Berlim, em fevereiro, e de lá saiu com o prêmio Teddy, voltado à melhor produção com temática LGBT. 

O filme da dupla gaúcha foi também o grande vencedor do Festival do Rio, no último fim de semana, tendo levado os prêmios de melhor longa de ficção, roteiro, ator e ator coadjuvante (Bruno Fernandes).

Para interpretar o rapaz frágil, cheio de travas na vida real, os diretores recorreram a um DJ que acharam por acaso. “Era magro, tatuado, todo de preto e com o cabelo escorrido”, segundo Reolon descreve o iniciante Shico Menegat.

É ele quem empresta o corpo para viver o protagonista reativo, oposto do estereótipo do “pathetic queer” (o homossexual vitimizado de obras incensadas como “Moonlight”). 

“Pedro é um personagem vulcânico”, diz Matzembacher. “E a tinta é a lava dele.”

 

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26º Festival Mix Brasil
De 15 a 25 de novembro, no Centro Cultural São Paulo, Cinemateca, IMS, CineSesc e SP Cine Olido. Programação completa e detalhes em mixbrasil.org.br.

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