Inacabado, complexo projetado por Niemeyer no Líbano aguarda resgate

Administradores de conjunto de 15 edificações nunca concluído lutam para que ele não sucumba

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Trípoli e Paris

No interior de um domo de concreto de diâmetro um pouco menor do que o da Oca do parque Ibirapuera, a cena é de ruína: à desolação de goteiras, penumbra e hastes de ferro aparentes, um artista libanês acrescentou temporariamente centenas de cordas a pender do teto e uma trilha sonora que oscila entre batimentos cardíacos e um ruído que emula o derretimento das calotas polares.

No centro, onde deveria estar o palco daquele espaço concebido por Oscar Niemeyer para acolher recitais de música experimental, um refletor a cada tantos minutos atravessa a escuridão como um gêiser. Há uma luz que nunca se apaga.

A obra espelha a história acidentada do imenso complexo em que foi exibida: um conjunto de 15 edificações espalhadas por uma área de 400 mil m² (o equivalente a aproximadamente 55 campos de futebol), encomendado ao arquiteto de Brasília no começo dos anos 1960 para encarnar um Líbano exuberante na economia e vanguardista no urbanismo.

O projeto, que deveria ser o cartão-postal por excelência de Trípoli, a segunda maior cidade do país, consumiu milhões de libras libanesas em aditamentos, teve sua construção interrompida diversas vezes e resistiu a uma guerra civil. Nunca concluído, ameaça sucumbir ao tempo.

Seus administradores acabam de receber uma verba da Fundação Getty para elaborar um plano gerencial de conservação.

Escudados por historiadores, arquitetos e urbanistas, terão dois anos para definir prioridades de reforma, apontar o que ainda precisa sair do chão e propor um uso para o que hoje é um elefante branco de cimento, espelhos d'água desérticos e desolação --só quebrada pelos gatos pingados que, mediante cadastro, cruzam seus portões para fazer cooper no parque algo inóspito que circunda as ainda-construções-que-já-são-ruínas.

Em paralelo, o Ministério da Cultura inscreveu o sítio numa lista preliminar de consideração para o título de patrimônio da humanidade, concedido pela Unesco.

A salvaguarda, segundo a própria subsidiária das Nações Unidas, não deve ser confundida com um "congelamento" do local --constitui apenas um filtro a mais de proteção contra deturpações da vocação original de cada equipamento que a recebe.

No caso do complexo projetado por Niemeyer, que tem como âncora um pavilhão de 640 m de comprimento por 70 m de largura dotado de uma voluptuosa cobertura em formato de bumerangue, a ideia era reinventar a mise en scène das grandes feiras internacionais.

Alojar todas as delegações sob um mesmo teto constrangeria o exibicionismo, nivelaria os estandes, estimularia o intercâmbio entre as delegações. A representação libanesa seria a única a ter um perímetro exclusivo, um retângulo de fachadas picotadas por arcos pontiagudos que deveria servir como vitrine para as exportações nacionais.

Mas o arquiteto queria mais. Imaginou a Feira Internacional como polo irradiador de um novo bairro, em que caberiam um teatro ao ar livre, um restaurante panorâmico, um museu da habitação, residências-piloto de cidades do futuro, uma creche para os filhos de funcionários e visitantes, a já citada sala para concertos experimentais --e, talvez o esplendor da utopia modernista, um museu espacial subterrâneo encimado por um heliponto.

A decolagem da empreitada transcorreu suave. Niemeyer foi recebido como um astro ao visitar, em 1962, os bananais que dariam lugar a seu pomar concretado. A pedra fundamental foi lançada no ano seguinte, com vistas a uma inauguração em 1966.

Dificuldades de financiamento, erros técnicos na construção do pavilhão central, acusações de desvio de dinheiro, interrupções das obras e adiamentos sucessivos do prazo de entrega tiraram o projeto da rota. E então veio a guerra civil libanesa.

Durante 22 anos, o canteiro de obras foi ocupado pelo Exército sírio. Há registros de execuções no local, só plenamente restituído a seu conselho gestor em 1998.

De lá para cá, houve quem quisesse erguer ali um parque de diversões ou um grande mercado de quinquilharias chinesas. O esqueleto da residência-modelo virou mais um prédio anódino de uma cadeia internacional de hotéis.

Em setembro passado, circulou na imprensa do Líbano que "o museu do objeto moderno", como Niemeyer chamava sua criação, estaria prestes a abrigar um polo de excelência tecnológica, o que está longe de animar arquitetos e entusiastas da obra do brasileiro.

"Temo que não façam as coisas com o devido cuidado", diz George Arbid, presidente do Centro Árabe para a Arquitetura. "É preciso pensar em uma forma criativa de programar e reutilizar os prédios, mantendo o espírito do lugar e atendendo às necessidades de desenvolvimento econômico de Trípoli."

O professor Farès el-Dahdad, que integra o conselho da Fundação Niemeyer, diz que reformar estruturas é positivo, mas "o mais desejável é que se transforme o complexo em um parque Ibirapuera de Trípoli, programando todos os prédios com eventos culturais".

Niemeyer dizia que a vida é um sopro. Na Feira Internacional de Trípoli, o que ela quer é fôlego.

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