Descrição de chapéu

Mesmo em crise, companhia de Pina Bausch se mantém vigorosa em 'Nefés'

Bailarinos transformam a caixa preta no clima bauschniano onde sonho, fantasia e festas se misturam

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Katia Calsavara
São Paulo

Nefés

É a primeira vez que São Paulo recebe “Nefés”, espetáculo sobre a cultura turca que a alemã Pina Bausch (1940-2009) criou em 2003 para a sua Tanztheater Wuppertal após temporada de residência em Istambul. Estamos, portanto, a 15 anos de distância do ímpeto criativo da artista, o que exige rigorosa remontagem e direção.

 

No entanto, desde a morte de Pina a companhia vive momentos difíceis, sobretudo a partir de julho, quando foi demitida a então diretora Adolphe Binder sem evidências de má gestão. Na passagem dela, que durou pouco mais de um ano, o repertório se manteve vivo e com novas criações como “New Pieces 1” e “New Pieces 2”.

Poderia-se esperar que “Nefés” (que em turco significa “respiração”) acompanhasse esse turbilhão no mau sentido, mas não é o que se vê em cena. Ambientada em um cenário aparentemente simples, em torno de um “lago” que enche e deságua, os bailarinos-atores transformam a caixa preta cênica no típico clima bauschniano onde sonho, fantasia, festas e símbolos se misturam sem parar.

bailarinas e um bailarino
Bailarinos do Tanztheater Wuppertal no espetáculo "Nefés", no Teatro Alfa - Lenise Pinheiro/Folhapress

Logo no início, o banho turco (hamam) é apresentado de forma bem-humorada, outra marca de Bausch, para em seguida as mulheres começarem a dominar a cena com suas penteadas ritmadas de cabelos. Os braços delas, aliás, merecem atenção em todo o espetáculo: parecem ter vida própria, tamanha a precisão dos gestos.

O sobe-e-desce do corpo de uma mulher guiado por um homem que a segura pelo decote revela o lugar inferior das mulheres na cultura turca, que, mesmo com avanços mais recentes, ainda surgem subjugadas e oprimidas. O que Pina fez com maestria em “Nefés” é quase inverter esses papéis e, sempre com humor, mostrar o assombro da hierarquia.

Exemplo é a cena em que a veterana Nazareth Panadero (sempre uma luz em cena) para de lavar algo para dar atenção ao homem repetidamente. Em seguida, machos sentados em cadeiras veem as mulheres chegarem de cabeças baixas e ajoelhadas a seus pés. Em outra passagem ela afirma, “eu sou muito gorda para você”.

A presença do “lago” cênico remete ao estreito de Bósforo, que liga o mar Negro ao de Mármara e à localização privilegiada do país, entre a Europa e a Ásia. Criado pelo cenógrafo e figurinista Peter Pabst, parceiro de Pina desde 1980 até sua morte, possibilita que a água entre e saia de forma sutil no espetáculo. Tirando a belíssima cena da chuva, o elemento adorado por Pina se estabelece quase como um ponto de passagem —chega a dar vontade de ver mais cenas molhadas.

um bailarino sem camisa e com calça preta molhado
O bailarino Rainer Behr, do Tanztheater Wuppertal, no espetáculo "Nefés", no Teatro Alfa - Lenise Pinheiro/Folhapress

As entradas com falas, ainda que poucas, exalam simpatia, sobretudo na voz da artista sueca Emma Barrowman, hilária também na cena projetada sobre o trânsito turco caótico.

O elenco aliás, continua plural, como Pina gostava, com novatos e veteranos misturados e artistas de diferentes nacionalidades. A trilha também favorece o clima do espetáculo, mesclando ritmos turcos clássicos e contemporâneos a entradas de Tom Waits, folk e heavy metal.

O segundo ato, embora bem mais arrastado do que o primeiro, traz grandes solos e "pas de deux", anedotas de casais, um mercado turco montado na frente de uma projeção do mar, entre outras surpresas.

Tal e qual Pina gostava, “Nefés” é repleto de interpretações e requer participação ativa do espectador. Somos nós que completamos os sentidos para tornar a experiência cênica ainda mais singular e difícil de esquecer.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.