Museu em Paris joga luz sobre land art visceral da artista Ana Mendieta

Cubana que mostra lado bruto em exposição paulistana ganha seleção de filmes em Paris

Cena de 'Creek' (1974), da artista cubana Ana Mendieta

Cena de 'Creek' (1974), da artista cubana Ana Mendieta Divulgação

Silas Martí
Paris

O corpo sempre representou um campo de batalha na obra de Ana Mendieta, a pele como alvo dos estilhaços do mundo em confrontos às vezes sangrentos.

Na mesma época em que deu início a uma longa série de filmes, juntos agora no museu Jeu de Paume, em Paris, ela fez uma de suas performances mais radicais, recriando em seu ateliê nos Estados Unidos uma cena de estupro —ela mesma fazia o papel da vítima, nua da cintura para baixo, seu sangue espalhado pela sala em gestos raivosos.

Os curtas que ela rodou na década de 1970, no entanto, dão a ver o lado mais etéreo, às vezes hippie, do entendimento que ela tinha do corpo, em especial o da mulher, aos olhos dela mais vulnerável num mundo atravessado de tensões históricas e sexuais.

Enquanto paulistanos agora têm a chance de ver a face mais brutal de sua obra, entre elas a performance do estupro, na mostra “Mulheres Radicais”, em cartaz na Pinacoteca, os parisienses podem ver uma seleção de 20 de seus filmes restaurados, obras em que ela parece cavar um espaço à sua imagem na natureza.

Rodados em grande parte num sítio arqueológico no sul do México, os curtas mostram a artista nua deitada em antigas tumbas astecas, seu corpo coberto de flores ou pedras.

Em outros filmes, ela aparece flutuando num riacho ou coberta de lama contra o tronco de árvores, num exercício de camuflagem às avessas —por mais que se embrenhasse no mato, sua carne está sempre em atrito com a madeira, a água e as rochas.

Essa artista cubana, que se radicou em Nova York e morreu na década de 1980 ao cair da janela de seu apartamento em circunstâncias nunca esclarecidas, fez também de sua obra uma tentativa de abrir um espaço no circuito branco e masculino das artes visuais para o trabalho visceral de uma feminista imigrante.

Nesse ponto, por mais que desse a dimensão e a escala do próprio corpo à sua exploração da paisagem, Mendieta não rompeu de todo com o zeitgeist daquele momento.

O SoHo nova-iorquino onde circulava ao lado do marido Carl Andre, artista minimalista que chegou a ser considerado um suspeito na investigação de sua morte, estava tomado por nomes, quase todos homens, que enxergavam a paisagem agreste dos descampados da América como matéria-prima de suas esculturas, a chamada land art.

Mendieta dava a essa terra, no entanto, outras camadas de leitura. Eram territórios vistos pelo prisma de quem perdeu a própria pátria —ainda adolescente, ela foi mandada de Havana para os Estados Unidos num programa de exílio para jovens— e por uma escala mais íntima, o corpo amalgamado ao solo em detrimento de uma paisagem exaltada em sua magnitude.

Seus filmes mostram rituais ao mesmo tempo delicados e violentos. Seriam enterros ou testemunhos de renascimento, um corpo que recarrega suas energias vitais no contato próximo com as chagas abertas na terra tanto pelo homem quanto pela fúria da natureza.

O corpo jovem da artista emoldurado por pedras ancestrais sugere uma busca doída por pertencimento, a tentativa de um retorno à terra que parece, no entanto, se esquivar da ideia de morte —Mendieta, ao contrário, extrai da natureza uma fonte de vida.

Num dos filmes da mostra, ela desloca as pedras que cobrem seu corpo só com a força da respiração, uma sepultura que se desfaz sob o impulso dos pulmões e do ventre.

Mas esse não é um novo parto sem traumas. O sangue visto como índice da violência em sua cena de estupro ressurge em alguns desses filmes não em rastros sôfregos mas como espécie de elixir. Ele cobre uma pedra na forma de um coração ao lado da artista e escorre como suor de sua testa num dos raros filmes em que deixa ver o seu rosto em primeiríssimo plano.

Uma década antes de sua morte, Mendieta se esforçava para encenar um renascimento exuberante em celuloide.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.