Descrição de chapéu

Prince tem genialidade redimensionada em ótimo disco póstumo gravado em voz e piano

Álbum é o primeiro fruto de arqueologia sobre espólio deixado pelo compositor de 'Purple Rain'

Prince se apresenta num show na Califórnia, em 1985

Prince se apresenta num show na Califórnia, em 1985 Liu Heung Shing/AP

Rafael Gregorio
São Paulo

Piano & A Microphone 1983

  • Preço R$ 40 a R$ 140 (CD, CD deluxe e vinil). Disponível nas plataformas de streaming.
  • Autor Prince
  • Gravadora Warner Bros

O príncipe está nu em “Piano & A Microphone 1983”, recém-lançado álbum inédito de Prince (1958-2016).

O disco é o primeiro fruto de uma arqueologia do arquivo deixado pelo artista, um dos maiores nomes do pop nos anos 1980 e influenciador de gerações com sua mescla de rock, funk e dance music.

Seus ensaios, shows e diários vêm sendo catalogados há dois anos por Troy Carter, dono da consultoria Atom Factory e executivo do Spotify. Resultados vêm sendo publicados pelo espólio do compositor em www.princeestate.com.

A bola da vez é este “Piano & A Microphone 1983”, disco cujo formato intimista foi retomado por Prince décadas depois, em sua última turnê.

As músicas do novo-velho álbum foram digitalizadas a partir de fitas. São nove canções gravadas em voz e piano, em 1983, no estúdio que Prince tinha em sua casa em Chanhassen, Minnesota (EUA) —o lugar onde ele morreu em abril de 2016, aos 57 anos, após overdose acidental de um opioide, e que hoje abriga um museu.

A primeira sensação ao ouvi-lo é a de um ambiente de muita intimidade. Isso se revela logo na abertura, “17 Days”, na qual ouve-se o músico pedindo para o técnico de som baixar as luzes e ajustar o volume e o eco da voz.

O ar de rascunho também se manifesta nas percussões em algumas canções, tanto com sons da boca quanto em batidas do pé no chão, e nas fungadas ao microfone aqui e ali.

A maior parte das músicas se conecta umas às outras, e não raro elas aparecem como vinhetas ou citações incompletas; é assim em “Purple Rain”, do álbum homônimo (1984) que, um ano depois, elevaria Prince ao status de megacelebridade.

Isso deixa um gosto de quero mais, mas há que se ter em mente o propósito —ao menos o declarado— do artista: sozinho, em casa, aparentemente embriagado, tocando para si mesmo.

Um dos pontos altos do trabalho é a versão de “Mary Don’t You Weep”, lançada em junho como um aperitivo.

Trata-se de um spiritual —canção de tradição oral, criada por afroamericanos com letras inspiradas no cristianismo e nas agruras da escravidão— célebre nos anos 1960 e 1970 nas vozes de James Brown (1933-2006) e Aretha Franklin (1942-2018).

Outros destaques são versões de músicas de Prince que depois fariam enorme sucesso, como “Strange Relationship”, do álbum “Sign O’ The Times” (1987).

Há ainda um arranjo de “A Case of You”, da cantora folk Joni Mitchell, e as inéditas “Why the Butterflies” e “Cold Coffee & Cocaine”, na qual um narrador se diz cansado da namorada que só tem a lhe oferecer café frio e cocaína.

A nudez e o experimentalismo do disco —que, vale lembrar, não foi registrado com vistas a ser lançado como um produto— guardam uma ambígua propriedade.

Por um lado, tendem a fazer do álbum uma experiência mais rica para os fãs. A eles e elas é conferido um inusitado vislumbre do artista antes de se tornar o ícone extravagante da década, herdeiro de nomes como James Brown, Stevie Wonder e Sly and the Family Stone.

Também é interessante notar certo senso de grandeza; só, em seu estúdio caseiro, Prince canta como o faria para as multidões que, parece saber, o aguardavam.

Por outro lado, a aparente precariedade torna o álbum atraente também a iniciantes.

Composições depois confeitadas com camadas de estética dos anos 1980, época cujos preceitos Prince ajudou a moldar, aqui revelam-se como vieram ao mundo.

Assim, nuas, elas dão relevo à beleza das melodias e potencializam o domínio de música e voz do artista, em especial em seus improvisos com dinâmica, respiração e ritmo.

Em suma: uma joia rara e cobiçada e, ao mesmo tempo, uma bela porta de entrada.

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