O prazer da solidão afastou o pintor Jorge Mori dos salões e das galerias

Prodígio da pintura, o artista de origem japonesa morto na terça teve primeira individual aos 14

Claudio Leal
São Paulo

A disciplina e o prazer da solidão afastaram o pintor Jorge Mori dos salões e das galerias. “Não sou de oba-oba, não frequento coquetéis e vernissages. Gosto de trabalhar”, avisava o ex-integrante do Grupo Guanabara (1950-52), morto aos 86 anos em São Paulo, nesta terça (20).

Prodígio da pintura, o artista de origem japonesa ganhou a primeira individual aos 14 anos, ainda aprendiz de Yoshiya Takaoka, e atreveu-se a fazer um autorretrato em público para desarmar os críticos incrédulos.

A ética de artista era moldada pelo espírito de homem irredutível. Em abril de 2017, passado o primeiro tratamento de um linfoma, Mori ofereceu aos médicos Zyun Masuda e Marcelo Litvoc um jantar no Deigo, seu restaurante favorito na Liberdade, especializado na culinária de Okinawa, sul do Japão. Sua vida era um milagre.

Autorretrato do pintor japonês Jorge Mori na exposição "Circulo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o Jovem Mori", no Centro Cultural Branco do Brasil, em 2008 - Karime Xavier/Folhapress

À mesa, Masuda era o mais velho amigo, filho do pintor nipo-brasileiro Kenjiro Masuda. Assumindo-se regente do encontro, Mori pediu em japonês todos os pratos –sashimi, sushi, ovas, iguarias de gordura de porco– e tranquilizou os convidados: “Okinawa tem um alto índice de pessoas centenárias, o que prova que porco não faz mal".

Um champanhe? “Não gosto. Para mim, champanhe é vinho 'raté'. É vinho falho” (um mês antes, no hospital, o bebedor exigente pedira a uma enfermeira: “Quero água com gás”). Mori amoleceu a rigidez do rosto quando a dona do restaurante cumpriu o ritual de se servir de seu vinho. “Ela não bebe com clientes, mas sou amigo dela e mereço essa concessão”.

A memória do pintor regressava, com frequência, à infância emparedada pela família. “Meu pai era um japonês de extrema direita, que por dez anos fez o filho acreditar que o Japão não havia perdido a guerra. Era também supremacista e me ensinou que os japoneses formavam uma raça superior”, revelou Mori, crítico da figura paterna e bem mais fascinado pelo mestre Takaoka, destacando-lhe a qualidade de retratista. “Ainda tenho um quadro de menino negro, de Takaoka, que vou doar ao Museu Afro Brasil. É uma obra-prima.”

Estimulado por Masuda, ele relembrou a paisagem inspiradora da obra "Ponte Velha do Rio Pinheiros", descrevendo as casas e as ruas do entorno, nos anos 1940. "Parei de pintar há dez anos. Passei o último ano no hospital. Não tenho quadro no meu ateliê", assegurou.

O pintor Jorge Mori - Divulgação

Somente a música barroca francesa o embalava no trabalho. A longa residência em Paris, onde conhecera o pintor japonês Foujita, nos anos 1950 e 60, motivava os relatos mais vivazes –e nesses recuos, sim, transparecia felicidade. À época, fora acolhido pelo crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, de quem recebeu o primeiro casaco de frio, usado nas caminhadas invernais até a Cinemateca.

“No Louvre, eu pintei por 12 anos ‘A Batalha de San Romano’, de Paolo Uccello. O Louvre tem uma tradição de copistas desde o século 19. Ao saber disso, Pietro Maria Bardi me avisou: esse quadro será do Masp. E ficou por muitos anos na sala dele”. Nas longas jornadas dentro do museu vazio, aprendeu a antiga técnica de velatura, que desejava transmitir a jovens pintores brasileiros. “Para isso, preciso de tempo”.

Meses antes, Mori concluíra uma história sintética do Japão, cuja pesquisa exigiu mergulhos em tabus. “Vou contar como a homossexualidade era comum no Japão. As relações sexuais entre samurais e aprendizes são conhecidas”, comentou.

As casas de prostituição masculina, no período do teatro Kabuki, estavam presentes no livro. “Há muito racismo contra os coreanos no Japão, mas vou mostrar que os japoneses têm a mesma origem dos coreanos. O livro vai causar escândalo na comunidade nipônica”, sorriu.

Olhando para o lado, ele viu um grupo de garotas “ocidentais” no restaurante àquela altura apinhado de descendentes de japoneses. “Como vocês descobriram este lugar?”, quis saber. “Ele é um grande pintor”, anunciou Masuda. E Mori reforçou: “Eu estou na internet”.

Mais de um ano depois, em junho de 2018, numa casa de repouso na zona sul de São Paulo, Jorge Mori se recuperava de uma queda. Os visitantes o encontraram de olhos fechados, deitado de forma pétrea sobre a cama do quarto simples, com o celular sem sinal ao lado do travesseiro.

Assim que ouviu a voz de Masuda, abriu os olhos com os polegares e os indicadores. “Tenho uma boa notícia”, iniciou Mori. “Três quadros pequenos meus dispararam de preço num leilão e cada um saiu por R$ 15 mil.” A fratura na perna não alterara os planos recentes: exposições, entrevistas e novas pinturas. “Não me perdoo por ter caído.” 

Na despedida, fez acenos afrancesados: “Merci bien! Au revoir! Le soleil brille, messieurs” [Obrigado! Adeus! O sol brilha, senhores].

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