Descrição de chapéu Livros

Acervo de jornais e revistas deixará casarão em SP para virar exposição e ser leiloado

Arquivo pertenceu ao empresário Jorge Yunes, morto no ano passado

Maurício Meireles
São Paulo

Quando chegarem os escafandristas, as revistas e jornais contarão o que comíamos e vestíamos. Mostrarão o que líamos e víamos no cinema, quem admirávamos. Os periódicos, se tiverem escapado de ir para a gaiola do passarinho, terão guardado nosso jeito de ser e de falar.

Há um casarão no Jardim Europa, bairro abastado de São Paulo, que dá a sensação de entrar em um mundo submarino desses. Nele, fica guardada a coleção de periódicos acumulada pelo empresário Jorge Yunes, que prosperou no ramo editorial, em especial com livros didáticos, além de ter sido o dono da Companhia Editora Nacional.

Morto no ano passado, Yunes deixou um conjunto formado por 2.500 títulos —o que inclui muitas edições de jornais e revistas diversos. Não há uma estimativa de quantas edições no total, mas basta dizer que elas ocupam todos os cômodos do casarão de dois andares —todos mesmo, até o que um dia foi um banheiro.

É raro haver coleções do tipo em mãos privadas. Grandes conjuntos de periódicos costumam ser reunidos por instituições públicas, enquanto acervos particulares costumam ter conjuntos com recortes específicos —o de Yunes, contudo, começa no século 19 e cobre também o século 20.

A raridade de coleções do tipo também se deve à dificuldade de conservá-las. O papel dos jornais, por exemplo, pode se esfarelar com o tempo. Guardá-los dobrados por muitos anos causa danos irreparáveis às páginas. Mas as de Yunes estão em ótimo estado.

A novidade é que o conjunto acumulado pelo empresário será vendido pela família, a partir de fevereiro, em uma série de leilões ao longo do ano. Beatriz Yunes, filha do colecionador, diz que, com o dinheiro arrecadado, ela e a mãe, Ivani Yunes, farão uma doação para a Pinacoteca.

“Meu pai comprou, e eu  tenho a obrigação de manter com excelência a coleção. Vamos vender só quando tivermos objetivos claros como esse”, afirma ela, que planeja também uma exposição.

A família manterá a posse de algumas coisas, mas a coleção de livros raros também deve começar a ser vendida ao longo de 2019 —é um conjunto voltado para a literatura brasileira, com 
diversas primeiras edições.

Os Yunes guardam em casa ainda uma acervo suntuoso de arte, com obras do século 4º até os anos 1970. Essa continua com os herdeiros, mas Beatriz conta preparar uma doação para o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, com peças da parte africana. Um livro com as obras desse segmento da coleção também deve ser publicado no ano que vem.

Este repórter visitou duas vezes o casarão onde os periódicos ficam guardados. Lá, estão publicações conhecidas como a revista Senhor e O Pasquim, mas também há outras que até hoje não foram alvo de antologias.

Por exemplo, Yunes guardou uma coleção da revista Voga, lançada por Millôr Fernandes e Fernando Sabino nos anos 1950. Em uma reportagem da época, não assinada, a publicação fazia ironias sutis com Charles Atlas Júnior —um fortão que se exibia pelas areias de Copacabana e era filho de um lendário fisiculturista, de mesmo nome.

Atlas Júnior se apresenta “cercado pelos indispensáveis brotinhos que povoam a praia maravilhosa”. O sujeito ainda dava esperanças para quem quisesse inflar como ele. “Aos 19 anos de idade, eu era um galinha morta”, dizia.

Também está lá a revista Diners, dirigida por Paulo Francis, que durou cerca de um ano, em 1968, e acabou com a prisão do jornalista. Na edição de Natal, a publicação trazia uma moça com garrafas de bebida vazias, uma bolsa de gelo na cabeça e a legenda “Capitu - olhos de ressaca”.

Um certo O Brasil em Jornal, sem data, dava notícias do passado como se tivessem acontecido ontem 
mesmo. O leitor que fosse assustado ler a manchete de uma edição, como “Pirata vende negros”, ia descobrir que a notícia falava do britânico John Hawkins, em 1562.

A hemeroteca de Yunes é uma coleção de coleções. Dentro dela, publicações se agrupam tematicamente —há muitas que registram a vida em São Paulo ao longo do século 20. Dentro delas, membros da alta sociedade tomam bons drinques e mulheres aparecem com quilos de maquiagem pesando no rosto. Quem quiser escrever a história dos grã-finos da cidade deve passar por lá.

Um ramo interessante, e raro mesmo, é o de jornais comunistas e anarquistas, ou apenas de esquerda. Ao longo do século passado, não só eles foram apreendidos pelas autoridades, mas também quem os guardasse em casa poderia arrumar encrenca. Por isso, sua preservação para a posteridade foi complicada.

Mas Yunes os tinha às dezenas. Estão lá o jornal Vanguarda Socialista, dirigido por Mário Pedrosa, que tinha colaboradores como Rachel de Queiroz, ou o Spartacus, de José Oiticica, avô do neoconcretista Hélio. Há um outro, Comício, semanário anti-Vargas dos anos 1950 que tinha como diretores os jovens Joel Silveira e Rubem Braga.

O conteúdo desse não era sempre explicitamente militante. Em uma reportagem não assinada, por exemplo, Comício mostrava aos seus leitores como funcionava a Bolsa de Valores. “Entre um berro e outro, pode-se perder milhões de cruzeiros na praça —mas um velho que pia baixinho faz quase sempre os negócios melhores”. 

O repórter se espantava que, na Bolsa da época, vendia-se até título de sócio- proprietário do Fluminense.

Falar em uma coleção de coleções não é só pelo fato de os títulos dialogarem. Yunes comprou os acervos de outros dois colecionadores importantes do gênero, Erich Gemeinder e Oscar Mendes.

“Quando alguém compra outras coleções, não está comprando só títulos, mas o próprio tempo. A coleção de Yunes incorpora o tempo de trabalho de Erich Gemeinder e Oscar Mendes”, diz Leonel de Barros, especialista contratado pela família para organizar a papelada.

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