Descrição de chapéu Cinema

Agruras do homem machão são tema de filmes e músicas que marcaram o ano de 2018

Palavra do ano, adjetivo 'tóxico' reverberou em obras sobre lado nocivo da masculinidade

Carey Mulligan e Jake Gyllenhaal em 'Vida Selvagem'

Carey Mulligan e Jake Gyllenhaal em 'Vida Selvagem' Divulgação

Guilherme Genestreti
São Paulo

Em “Vida Selvagem”, uma cidadezinha americana é ameaçada por um incêndio próximo. A fumaça nociva paira como metáfora da força que envenena o casamento de Jerry e Jeanette. 

O marido, vivido por Jake Gyllenhaal, se vê sem emprego e, portanto, inapto a continuar como arrimo daquela família do início dos anos 1960. Para não se submeter à ideia de ser bancado pela mulher, ele aceita a tarefa, viril e perigosa, de ajudar a apagar as chamas que se propagam.

O longa engrossa a leva de produções a refletir sobre a masculinidade tóxica, tema que não se resume ao machismo, mas ao cabresto comportamental que homens impõem a si e aos outros pelo fato de serem homens. Seria a ode à agressividade, à competitividade, à predação sexual.

O assunto pululou tanto que o dicionário Oxford, um dos termômetros do espírito do tempo, elegeu como palavra do ano o adjetivo “tóxico” —não só por ter sido muito buscado nesses 12 meses, mas por se relacionar a temas quentes do período, que vão do ambientalismo a, sobretudo, as discussões de gênero.

Não poderia ser diferente num ano em que o nome de Brett Kavanaugh monopolizou os noticiários. Acusado de agressão sexual, ele foi alvo de impasse ao ser nomeado por Trump para ocupar um assento na Suprema Corte. 

Foi o ano que talvez tenha encerrado a carreira de Woody Allen. Acusado de molestar a filha adotiva, ele viu seu mais recente filme, “A Rainy Day in New York”, ir parar no limbo.

Enquanto isso, suas obras pregressas são revistas com a lente reprovativa de 2018, caso de “Manhattan”. Lançada há 39 anos, a elogiada história de amor entre um autor de meia idade e uma adolescente seria inconcebível hoje.

O homem fragilizado, ou que vê como deletéria a energia que exala de sua cultur, é o espelho no cinema autoral daquilo que na produção comercial tem se manifestado sob a forma de super-heroínas poderosas (caso da Mulher-Maravilha e da Capitã Marvel).

No incensado “Roma”, de Alfonso Cuarón, o que une o intransponível abismo social entre patroa e empregada doméstica é o fato de que ambas se veem como vítimas de companheiros irresponsáveis.

Mais direto ao ponto é a comédia francesa “Eu Não Sou um Homem Fácil”, que imagina um galanteador acordando num universo paralelo em que as mulheres é que ditam todas as regras: elas é que assediam, elas é que assobiam para eles, elas é que podem sumir após a primeira noite.

Melhor exemplo dessa leva, o sul-coreano “Em Chamas” traz a assombrosa figura de um jovem que incendeia estufas apenas para aliviar suas tensões. E “O Favorito”, cinebiografia sobre a corrida presidencial do senador Gary Hart, se constrói em torno desse sujeito que é incorrigível, salvo um aspecto: ele é um crápula que não consegue deixar de trair a mulher.

São filmes rodados antes da irrupção do #MeToo ou quando o movimento engatinhava. De forma atabalhoada, sem maior sutileza, captam uma mudança nos ares e procuram traduzir a angústia e a culpa masculinas em 2018. Não à toa, exceto o título francês, todos os longas citados têm homens no comando. 

Fora do cinema, a culpa também movia as letras do rapper XXXTentacion, uma das sensações do ano e vindo de um universo carregado de hipermasculinidade. Assassinado em junho, o cantor de 20 anos deixou em seu último trabalho lamentos de macho. 

“Eu entoava canções de ninar tóxicas/ Olhando para o céu/ Gritando palavras sem remorso”, escreveu o ex-assaltante, preso por bater na namorada grávida, na póstuma “Staring at the Sky”. Saudado pela revista Rolling Stone como “antena do zeitgeist”, o rapper também legou versos como “Me desculpe porque eu não conseguia ver a dor nos seus malditos olhos.”

O roqueiro Bruce Springsteen, uma das personificações da masculinidade americana, foi outro que contemporizou. 

Em entrevista à Esquire, o autor de letras sobre carros Chevy 69 e sujeitos com rifles nas mãos elogiou os dois filhos homens, “que não estão presos a uma sensibilidade masculina típica dos anos 1950”, com a qual ele teve que lidar. 

A fala de Springsteen foi lembrada num ensaio da revista New Yorker, que a jornalista Naomi Fry enumerava, de forma bem-humorada, um “punhado de homens que não fizeram tão feio neste ano.”

A lista inclui um carismático mascote de hóquei, um pato que surgiu no Central Park e um boi gigante australiano. 

O mesmo texto nota o aparecimento de um novo tipo de jovem galã em Hollywood, materializado nos magrelos e ultrassensíveis Timothée Chalamet e Lucas Hedges. Esse último, por sinal, protagoniza “Boy Erased”, sobre adolescente gay forçado pelos pais a virar um “homem padrão”.

Desde fevereiro, como que antevendo o debate que permearia o ano, o comediante Michael Ian Black deu as caras na CNN e assinou texto no jornal New York Times para denunciar o “abatimento masculino”. Sua questão: Por que a maioria dos atiradores em atentados nos Estados Unidos são homens?

“Ser uma garota é beneficiar-se de décadas de debates sobre as complexidades da feminilidade, suas várias formas e expressões”, escreveu no NYT. “Garotos, contudo, foram deixados para trás.”

Sensibilidade à parte, não se pode ainda dizer que 2018 tenha sepultado o macho alfa. 

Enquanto o ano se encerra, quem domina as bilheterias no planeta é “Aquaman”, super-herói de voz possante e com um volume de músculos que não eram vistos desde a era Stallone-Schwarzenegger.

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