Artistas retratam cidades arrasadas e chacinas do país ao som de heavy metal

Exposição com trilha sonora do Sepultura tem obras de 52 fotógrafos e vai até março, em Fortaleza

João Perassolo
Fortaleza

"Dona Maria de Lurdes Oliveira ouviu o grito. Depois um barulho estranho. Depois olhou pela janela e foi engolida pela onda de lama. Quando voltou a si, estava de outra cor. Foi do paraíso ao inferno, em pouco tempo.”

O trecho é parte do texto que acompanha uma seção de fotos documentando a pequena cidade mineira de Mariana absolutamente destruída após o rompimento da barragem da mineradora Samarco, no final de 2015.

As imagens de Avener Prado, repórter fotográfico da Folha, fazem parte da exposição “Terra em Transe”, inaugurada na quarta (5), no Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, em Fortaleza, e que segue em cartaz até 31 de março.

As fotografias das casas consumidas pelo barro vêm acompanhadas de uma trilha sonora do inferno: os alto-falantes despejam no ambiente climatizado do museu músicas da banda de metal pesado Sepultura. A sensação é de entorpecimento e desorientação.

“Terra em Transe” reúne 52 fotógrafos brasileiros, a grande maioria contemporâneos, para contar uma história de “cidades devastadas, de dor e prazer, violência e paixão, e da questão do corpo”, diz o curador, Diógenes Moura.

O que se vê nas 420 fotografias expostas é o retrato de um Brasil assolado por morte, violência e destruição enquanto parte do povo se entrega com devoção a rezas e religiões e outra parte desfruta dos prazeres do corpo.

Estão contempladas tragédias recentes, como o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro —em uma potente imagem de Uanderson Fernandes que abre a exposição— e a chacina de 2015 que resultou na morte de 17 pessoas em Osasco e Barueri.

Há também o Brasil dos enfrentamentos de 2017: dos usuários de crack do centro de São Paulo contra a polícia, nos cliques de Danilo Verpa (também repórter fotográfico da Folha), e da população do Recife contra a reforma da Previdência, pelas lentes de Eric Gomes.

Expostas ao lado de imagens da repressão policial durante a ditadura militar nos anos 1970, dos veteranos Evandro Teixeira e Juca Martins, as fotografias de agora dão a impressão de que poderiam ter sido tirada há décadas. É um tempo morto, que não passa.

A contraposição a tanta violência se dá com núcleos de imagens que retratam a força criadora de “um Brasil profundo e real”, segundo o curador. Tais fotos têm uma paleta de cores de alto contraste, o que acentua, formalmente, os temas incandescentes em questão.

Há uma série de registros de cerimoniais religiosos (macabros), a exemplo das festas para Exú em Porto Alegre e em Belém, além de retratos gigantes de pessoas com os corpos inteiros tingidos de preto, usando chifres —a micareta do grupo Cãos de Jacobina, na Bahia, que encena a luta do bem contra o mal.

“Ninguém vence isso aqui, essa criação nossa. Nem Bolsonaro nem Haddad vencem isso. Essa história de presidente, eles passam”, diz Moura. “Isso aqui é o frescor que a gente tem, que a Europa não tem mais, que os Estados Unidos não tem mais. Essa doença que somos nós”, completa.

Por fim, um grupo de imagens refaz a história de corpos trans da década de 1980 até o assassinato da travesti Dandara dos Santos, em Fortaleza, no ano passado. As existências sexuais não binárias aparecem tanto nas cidades grandes (como nos retratos de Celso Brandão, Claudia Guimarães e Ana Carolina Fernandes), quanto no sertão (Nuno Rama).

A exposição é, de certa forma, uma expansão do recém-lançado “O Livro dos Monólogos” (editora Vento Leste), no qual Diógenes Moura, também escritor, interliga textos e imagens sobre três locais fundadores em sua vida: o bairro dos Campos Elíseos, em São Paulo, onde mora; o arrabalde de Tejípio, no Recife, onde foi criado; e a região da Liberdade, em Salvador, cidade onde viveu durante 17 anos.

É difícil não se questionar como uma mostra que toca em questões tão atuais para o país não foi acolhida, primeiramente, por uma instituição de arte de São Paulo, metrópole que se coloca como o centro irradiador de cultura do país. O curador diz ter a intenção de levar a exposição para a capital paulista e para o Recife em 2019, mas ainda não há data nem locais confirmados.

“Terra em Transe” foi o ponto alto da primeira edição do festival de fotografia Solar, encerrado no domingo (9). De tom altamente político, o evento reuniu, em Fortaleza, durante quatro dias, nomes relevantes da fotografia nacional e internacional ao redor do tema abismo.

A mostra é como uma música do Sepultura da fase em que o grupo mineiro gravou com os índios xavantes e com Carlinhos Brown: ensurdecedora e violenta, mas que reconhece a tradição (negra) brasileira.

 

Terra em Transe

Museu de Arte Contemporânea, r. Dragão do Mar, 81, Fortaleza. Até 31 de março de 2019. De ter. à sex., das 9h às 19h; sáb. e dom., das 14h às 21h Grátis. Livre.

O Livro dos Monólogos (Recuperação para Ouvir Objetos)

Diógenes Moura. Ed. Vento Leste. R$ 60 (200 págs.)

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