Descrição de chapéu

Estratégia alternativa marca imprensa e cultura após o AI-5

Circuito era sinônimo de resistência e sobrevivência em tempos obscurantistas

A atriz Márcia Rodrigues em cena do filme 'Matou a Família e Foi ao Cinema' (1969), de Júlio Bressane Divulgação

Marcos Augusto Gonçalves

O golpe militar de 1964 investiu contra organizações sindicais, partidos políticos e lideranças de esquerda, mas poupou em seus primeiros anos a maior parte da intelectualidade marxista e da produção cultural engajada, que se manteve viva e presente no circuito.

Do musical "Opinião", encenado em 1964, à explosão criativa de 1967, ano de "Terra em Transe", "O Rei da Vela", "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", as práticas mais perversas da ditadura, como a censura prévia, as prisões arbitrárias e a tortura, ainda não haviam sido aplicadas de maneira drástica e sistemática ao mundo cultural.

A situação mudou no final de 1968, quando a ditadura —em meio ao recrudescimento de protestos estudantis, bombas da direita e ensaios de guerrilha de esquerda— mostrou sua face mais tenebrosa com a edição do AI-5.

Intelectuais, artistas e jornalistas foram presos, muitos se exilaram ou se viram forçados a deixar o país. A universidade foi asfixiada e a imprensa e a cultura, amordaçadas.

Nesse ambiente de repressão e dispersão, a palavra "sufoco" passou a ser comumente usada em referência ao clima irrespirável que se instaurava —e a expressão "vazio cultural" surgiu para designar a retração dos movimentos que sacudiram a cena nos anos anteriores.

Paralelamente à produção oficialesca e bem-comportada que prosperava na TV e nos veículos de massa, novas estratégias culturais e de comunicação começaram a ser ativadas.

Elas diziam respeito tanto à readequação das linguagens (como as metáforas enviesadas para driblar a censura nas letras de protesto da canção popular) quanto ao modo de produção e circulação em áreas menos dependentes dos esquemas comerciais e industriais.

Em junho de 1969, seis meses depois do AI-5, foi lançado no Rio de Janeiro o semanário O Pasquim, que deu a dica dos novos tempos: a intervenção com meios alternativos.

Esse circuito se expandiu nos anos seguintes e as expressões imprensa alternativa e cultura alternativa tornaram-se marca registrada do pós-AI-5 e sinônimo de resistência e sobrevivência em tempos obscurantistas.

Embora muitas dessas iniciativas tivessem mantido vínculos com visões de esquerda mais tradicionais, acentuou-se ali uma linha dissonante, que já se insinuara no tropicalismo e correspondia, também, a tendências da cena internacional.

Setores da juventude, desencantados com as alternativas do sistema e desconfiados da cartilha dos movimentos marxistas, se sentiram atraídos pela contracultura, pelo experimentalismo e pelo comportamento transgressivo associado ao rock, às drogas e à "revolução individual".

Foi o próprio Pasquim que colocou em circulação no Brasil o termo "underground", título de uma coluna assinada por Luiz Carlos Maciel, morto no ano passado. Cunhou-se depois a corruptela "udigrudi", usada para identificar o cinema experimental de Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Ivan Cardoso e outros.

Em 1972, Maciel também editou uma versão alternativa da revista americana Rolling Stone, que dava capa para Bob Dylan, mas também para a musa Gal Costa —protagonista de um clássico da época, o show (que virou o disco) "Fa-Tal - Gal a Todo Vapor", dirigido por Waly Salomão.

Poeta e letrista, Waly foi um vigoroso agitador desse circuito e um dos muitos que investiram no lançamento de livros alternativos ("Me Segura qu'Eu Vou Dar um Troço"), fenômeno que marcou a produção de poesia nos anos 1970.

Em 1971, ele idealizou, com Torquato Neto, a revista Navilouca, um experimento poético, artístico e editorial que arregimentou nomes como Augusto de Campos, Décio Pignatari, Hélio Oiticica, Chacal e Caetano Veloso.

A revista só foi lançada em 1974, com o apoio de André Midani, executivo da indústria fonográfica. Dois anos antes, Torquato se suicidara —num episódio que permanece simbolicamente associado aos anos de chumbo.

Também em 1974, estreou, com "Inspetor Geral", de Gogol, o grupo teatral alternativo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Com a cara da geração cultural pós-68, voltou-se, com humor e imaginação, para a discussão política e existencial vinculada ao cotidiano e aos dramas da juventude urbana.

A partir do governo de Ernesto Geisel, com a crise do "milagre brasileiro" e a perspectiva de uma abertura gradual, o pior parecia começar a passar. Mas ainda foi preciso esperar até 1978 para que o AI-5 fosse enfim revogado.

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