Descrição de chapéu

'Fun Home' é feliz união entre literatura e HQ

Reeditados no Brasil após anos fora de catálogo, quadrinhos de Alison Bechdel já nasceram clássicos

Detalhes de ‘Fun Home’, HQ autobiográfica da autora Alison Bechdel - Divulgação
Érico Assiss
São Paulo

Fun Home: uma Tragicomédia em Família

  • Preço R$ 54,90 (240 págs.)
  • Autor Alison Bechdel (Tradução: André Conti)
  • Editora Todavia

"Fun Home" praticamente nasceu clássica. Embora a autora, Alison Bechdel, fosse ilustre desconhecida de quem não acompanhava sua tira "Dykes to Watch Out For" em jornaizinhos alternativos, a obra apareceu numa época, em 2006, que clamava pela graphic novel que sedimentasse o segmento nas livrarias com algo denso, reflexivo e que lembrasse literatura. O encaixe foi preciso. 

Doze anos depois, “Fun Home” divide espaço com “Maus”, “Watchmen”, “Persépolis” e poucas outras na lista de introdução ao quadrinho adulto “literário”.

Ganhou continuação (“Você É Minha Mãe?”, de 2009), causou polêmica em bibliotecas e universidades e virou um musical off-Broadway, depois da própria Broadway, que ganhou prêmios Obie e Tony.

A revista Time a adotou como “Livro do Ano” em 2006 —tratou-a como literatura, não HQ. O flerte quadrinho/literatura é tanto motivo de atração da obra quanto um dos fios condutores da trama.

“Fun Home” é autobiográfica. Bechdel parte da história do pai, Bruce, que escondeu que era gay durante boa parte da vida e possivelmente suicidou-se. Ao mesmo tempo, a autora conta como se descobriu homossexual.

Não há mistério a desvendar. Sabemos desde o início que o pai morreu atropelado por um caminhão. Se jogou-se ou não na frente do veículo —atormentado pelo pedido de divórcio da esposa e pela vida no armário— é dúvida que não vai se resolver.

Tampouco há linearidade. Bechdel ordena capítulos por temas, com idas e vindas no tempo para destrinchar aspectos como o fato de seu pai administrar uma casa funerária —a “fun(eral) home” do título—, a dinâmica entre ela, irmãos e pais, o casamento conturbado dos progenitores.

A opção pela organização temática rende narrativa mais baseada em reflexão que ação. Quadrinhos tradicionalmente tendem ao inverso. Bechdel, contudo, usa as potencialidades de HQ a favor da reflexão.

As expressões calculadas nos olhos e bocas das personagens, a ambientação requintada da casa —cheia de antiguidades, obsessão do pai— que acompanha cada cena, as viradas de página, a dosagem de texto por quadro.

A autora posa para foto
Alison Bechdel, autora de 'Fun Home' - Reprodução

Embora “Fun Home” pudesse funcionar como bom livro em prosa, as economias, os contrastes e os ritmos que Bechdel consegue em quadrinho dão outras dimensões à história que ela narra.

Os recursos de HQ beneficiam inclusive a não linearidade. Tal como no cinema, quadrinhos prestam-se à repetição de certas cenas que vão figurar em mais de um capítulo.

O “literário” está ainda em outro nível: o pai de Bechdel era também professor de literatura. Cada capítulo é construído em contraste com um grande autor: Albert Camus, Oscar Wilde, James Joyce. Ela descreve o pai como os sonhadores de F. Scott Fitzgerald, a mãe como as figuras sofridas de Henry James.

Apesar de não faltarem dramas particulares à vida de Bechdel, é curioso o esforço da autora em não tratar sua infância como um período triste ou traumático. O “fun” do título também é de “divertida”.

Pode-se encontrar paralelos com qualquer infância comum: as pequenas obsessões das crianças, as vidas secretas dos pais, o crescer e se descobrir tão igual e tão diferente.

E mais uma constante das famílias: filhos que acham que os pais não sabem o que se passa, e pais que acham que sabem tudo que se passa com os filhos. Apesar de ser contada só por uma filha, “Fun Home” é humilde em reconhecer que os dois lados se enganam.
 

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