Livro detalha processo por legado de Kafka, no qual Israel bateu Alemanha

Acervo estava guardado em casa de octogenária que vivia entre gatos e baratas, descreve arquivista

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Jerusalém

Quando assistiu à audiência da Suprema Corte de Israel, em 8 de agosto de 2016, o escritor e jornalista Benjamin Balint, 42, já sabia: era fim de um processo que nem o próprio Franz Kafka, a figura central do julgamento, seria capaz de prever. 

A sessão em Jerusalém encerrava uma disputa judicial de décadas entre uma família e duas instituições literárias pelo acervo do escritor austríaco Max Brod, que inclui material de Kafka, seu melhor amigo. Mas não respondia a todas as perguntas levantadas pela querela. Principalmente: a quem pertence Kafka?
Balint não tenta responder a essa questão em seu livro “Kafka’s Last Trial: The Case of a Literary Legacy” (“O Último Processo de Kafka: O Caso de um Legado Literário”), lançado em setembro em inglês (traduções em espanhol, húngaro, polonês e russo e hebraico estão prestes a sair). 

O escritor nascido em Seattle, nos Estados Unidos, radicado em Israel há 14 anos, propõe-se apenas a relatar —sem tomar partido— a fascinante história do julgamento e seus dilemas legais, éticos e de prestígio nacional.

“Kafka teria apreciado as ironias do processo”, disse Balint à Folha no Instituto Van Leer, em Jerusalém, onde trabalha como pesquisador. “A maior delas é o fato de que ele era a menos possessiva das pessoas. Mas, após sua morte, todos se tornaram possessivos em relação a ele.”

homem de calça jeans sentado em cadeira segurando livro
O escritor Benjamin Balint com seu livro 'O Último Processo de Kafka', em Jerusalém - Daniela Kresch/Folhapress

O julgamento no Supremo teve como objetivo decidir de uma vez por todas a quem pertence o acervo de Max Brod —e, consequentemente, o material de Kafka. Três lados se digladiavam, entre eles duas instituições: a BNI (Biblioteca Nacional de Israel), para o qual Kafka era, acima de tudo, um escritor judeu; e o Arquivo Literário alemão de Marbach, para o qual Kafka era, acima de tudo, um autor que escrevia em alemão, apesar de ter nascido em Praga, hoje capital da República Tcheca.

Será que Kafka pertence a Israel, mesmo nunca tendo colocado os pés na região ou nunca ter escrito a palavra “judaísmo” em seus livros? Ou à Alemanha, onde Kafka nunca morou e que foi responsável pela morte de suas três irmãs no Holocausto?

“Havia algo ideológico e nacionalista sobre o fato de que justamente Israel e Alemanha disputavam Kafka. Não só pelo passado dos dois países, mas principalmente pela fato de que Kafka resistiu à atração do sionismo tão fortemente quanto ele resistiu à atração de sua identidade alemã”, analisa Balint.

O terceiro lado do julgamento, também intrigante, era o da octagenária Eva Hoffe —filha da secretária de Max Brod, Esther Hoffe, para quem o escritor deixou seus pertences como um “legado de família”. 
Eva, que morreu em agosto deste ano, tinha uma conexão profunda e sentimental com o acervo. Ela considerava Brod, melhor amigo de seu pai, Otto, como um “segundo pai”.

No final das contas, a Biblioteca Nacional de Israel levou a melhor. Mas é difícil dizer se o veredito do Supremo teria agradado a Kafka, até porque ele morreu acreditando que todos os seus escritos seriam queimados. Foi o que ele pediu a Max Brod às vésperas de sua morte, por tuberculose, em 1924. Mas Brod não levou a cabo o último desejo do amigo e transportou tudo para Israel, para onde imigrou em 1939, pouco antes da Segunda Guerra.

Em Israel, Brod lutou para publicar obras inéditas do amigo, como o icônico e inacabado “O Processo”. A seu lado, estava a fiel secretária (e, especula-se, amante) Esther Hoffe, para quem Brod —que não teve filhos— deixou tudo em testamento.

Por anos, boa parte do tesouro literário ficou guardado no pequeno apartamento de Esther em Tel Aviv —que chegou a vender partes, como o original de “O Processo”, arrebatado em leilão por US$ 2 milhões, em 1988. Quando ela morreu, em 2007, suas duas filhas, Ruth e Eva, herdaram tudo. Mas o Estado de Israel, por meio da BNI, decidiu que era hora de pleitear as obras e disponibilizás-la ao público (o Estado já havia tentado na década de 1970, sem sucesso). Eva lutou até sua morte para manter sua preciosa herança.

Para os israelenses, a Biblioteca Nacional tinha razão: o material merecia estar na instituição (que prometeu digitalizar e colocar tudo na internet), e não com Eva, que foi retratada pela imprensa local como uma “louca dos gatos”. Seus bichanos passeariam sobre manuscritos, novelas e cartas de Kafka, que acumulavam poeira.

Ao que tudo indica, não se tratava apenas de lenda urbana. O arquivista da Biblioteca Nacional Stefan Litt contou à Folha que, há dois meses, quando finalmente conseguiu entrar no apartamento, encontrou uma cena de horror.

“Foi uma experiência muito estranha. O apartamento tinha uns 20 ou mais gatos e baratas correndo entre nossas pernas. Demoramos cinco horas para esvaziarmos tudo. Levamos para a biblioteca quase 60 caixas.”

Segundo Benjamin Balint —o único jornalista com quem a reclusa Eva falava—, a octagenária realmente não deixava que estranhos entrassem em sua casa, mas havia um elemento de vergonha envolvido. Balint conta que sua situação financeira era tão ruim que ela morreu praticamente sem dentes por não poder pagar o tratamento.

“Ela era excepcionalmente inteligente, mas também uma mulher muito privada. Toda a fama foi imposta a ela enquanto lidava com a morte de sua irmã e com problemas de dinheiro. Ela me disse, uma vez, que Kafka fora uma maldição para ela.”

Segundo Eva, os museus de Israel e da Alemanha só haviam se interessado pelo acervo de Max Brod por causa de possíveis obras inéditas de Kafka. O acervo tem milhares de páginas, mas, ao que tudo indica, apenas 2% são obras de Kafka. Mas esses 2% são mais valiosos do que os 98% restantes de Brod, que parece ter vivido à sombra do amigo mais renomado, apesar de também ser considerado um escritor excepcional. “Brod merecia mais reconhecimento”, dizia Eva.

Em dezembro de 2016, o conteúdo do primeiro cofre foi transferido para a Biblioteca Nacional. As seis primeiras caixas foram abertas e Benjamin Balint estava lá como uma rara testemunha. Até agora, os especialistas da BNI ainda não terminaram de verificar todo o acervo (ainda falta o conteúdo do cofre de um banco suíço).

Mas Benjamin Balint joga água fria na esperança de quem gostaria de ver uma obra inédita de Kafka, uma nova “A Metamorfose” ou “O Castelo”. “Duvido que encontrem, até porque Max Brod teria publicado, se houvesse tal coisa.”

O arquivista Stefan Litt confirma. “Max Brod publicou tudo de Kafka. Não acho que teremos surpresas.”

Alguns dos achados já foram mostrados recentemente a estudiosos, entre eles correspondência com o escritor Stefan Zweig, que se exilou no Brasil. No livro, Balint conta como o suicídio de Zweig, em 1942, em Petrópolis, afetou Brod. 

“A notícia fez com que Brod entendesse a magnitude da catástrofe cultural que acontecia com os judeus exilados.”

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