Descrição de chapéu
Moda

Mercado a ser explorado, corpo se tornou algo que se quer gerenciar

Diante da pressão que exigia o físico magro e firme, as pessoas perdiam o prazer de comer e de descansar

Da esq. para a dir., o modelo Jou bellini usa casaco, Timberland; e sunga, Amir Slama. Jorge Alano usa bermuda, Osklen; e long john para surfe, Quicksilver Hudson Rennan/Folhapress

Mary del Priore

As últimas décadas do século 20 fundaram uma retórica sobre a necessidade de ter um corpo jovem, belo e saudável. A indústria cultural ensinava então que esse era o caminho para a felicidade individual. 

Uma série de problemas clínicos, antes desconhecidos, começou a surgir: o fisiculturismo compulsivo, a anorexia e a bulimia, a obesidade mórbida e a extrema obsessão com a aparência. Ela se tornou parte integrante da identidade dos indivíduos. 

A competição, a globalização, o bombardeio de fotos em revistas e telas passaram a exigir mais e mais das aparências. A imagem corporal, feita só de gente moça, esportiva e bonita levou a melhor.  

O verbo malhar integrou o vocabulário das classes médias. Nascia a “dietomania”: a ginástica da Força Aérea Canadense, testes de Cooper, Dr. Atkins. Tinha até sabonete milagroso: o Magripele! 

Mas, atenção, viver a base de pílulas, gotas e chás milagrosos, levava ao desmaio. 

A obesidade passou a ser discutida por autoridades e encarada como um problema de medicina social. Maus hábitos alimentares hereditários eram apontados de dedo. Afinal, “ser gordo” era uma tortura, nunca uma opção.

Ou um vício, pois o paciente tinha que se ajudar. Havia os que sofriam de falta de vergonha na cara. Eram glutões. Problemas endocrinológicos ou os psicológicos eram debatidos por especialistas. 

Nas estantes, acumulavam-se livros de receitas emagrecedoras. A dietética era uma das soluções: quibes, por exemplo, eram altamente recomendados. Aparelhos de uso doméstico, como o Rolomag e o Vibra-Esbelt, prometiam combater a celulite e a gordura localizada. O conhecido comediante Jô Soares era exemplo: perdera 85 quilos, em dez meses, entre 1972 e 1973, mas não dava sua receita. Divulgavam-se tabelas com peso ideal. Tinha início a caça aos gordos.

 

Para as mulheres, o palco para transformações teve como cenário as academias de ginástica. Nos anos 1970, desembarcaram no país muitas máquinas e técnicas de marketing: era o body business. 

O corpo numa sociedade de abundância industrial tinha uma nova tarefa —ser um corpo consumidor em cada uma das suas partes. Para as unhas, esmaltes e lixas. Para os cabelos, xampus e tinturas. Para o corpo, bronzeadores, hidratantes, sabonetes.

Difundindo padrões de beleza, as imagens publicitárias de produtos nunca dantes vistos, refletiam-se no público feminino. Nascia a imagem do corpo livre e liberado. Um corpo sem cicatrizes, um corpo sorriso, um corpo publicitário. Em relação às que se encaixavam nos padrões estéticos, a publicidade embutia uma ideologia de fracasso.

Mas o culto não era para todos. O tal corpo adorado era um corpo de classe. Ele pertencia a quem possuía capital para frequentar academias, tinha “personal trainers”, investia no “body fitness” sendo trabalhado e valorizado até adquirir as condições ideais de competitividade que lhe garantissem assento na 
lógica capitalista. 

O artifício era esperto uma vez que inseria em outro tipo de mercado consumidor, toda uma camada da população feminina privada dos serviços de academias e de práticas dispendiosas. O canal de TV Shoptime e os catálogos a domicílio traziam ofertas a preços populares, de aparelhos para “tirar a barriga” a “steps”. A beleza era vendida como uma promessa para todas e todos!

A TV, o cinema e a publicidade descobriram as vantagens de trabalhar com atores e modelos torneados como estátuas gregas. O fortalecimento do tônus muscular era fundamental numa sociedade que se movia cada vez menos.

Para quem detestasse academias, havia solução: o PT ou “personal trainer” atendendo a domicílio e cobrando por hora. A batalha era por músculos certos, no lugar certo. Porém, alertavam os professores: nada de milagres. Ninguém dormia gordo e flácido para acordar magro e malhado. Diante da pressão social que exigia corpos magros e firmes, as pessoas perdiam o direito de se abandonar aos prazeres da mesa e ao descanso da vida sedentária. 

Antes, as pessoas se preocupavam com seus corpos quando estavam doentes. No final do século 20, as desconfianças frente ao surgimento de qualquer enfermidade, à deterioração da idade e ao envelhecimento se tornaram regra. 

Mercado a ser explorado infinitamente, o corpo se transformou então em algo que se queria administrar. Não havia parte que não se modificasse graças à tecnologia ou à cirurgia estética. “Estar em forma” foi retórica que mudou a maneira de viver e pensar, inaugurando condutas que se multiplicaram. Nela, homens e mulheres pareciam condenados a ser apenas um corpo, seu corpo.

Historiadora, é autora de ‘Histórias Íntimas’ e ‘Histórias da Gente Brasileira’

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