Música era escrita até em papel higiênico em campos de concentração

Maestro Francesco Lotoro recupera partituras e gravações há três décadas, e João Carlos Martins planeja turnê com repertório

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São Paulo

Tudo começou na pequena cidade de Barletta, no sul da Itália, onde o músico Francesco Lotoro há três décadas centraliza uma pesquisa sobre a música composta nos campos de concentração.

Formado na Academia Franz Liszt, de Budapeste, ele inicialmente ansiava apenas ampliar o seu repertório de pianista concertista.

A pesquisa, contudo, assumiu proporções colossais e acabou por se tornar uma missão de vida. “Não estamos falando de três, quatro ou dez músicas, mas de 8.000. E tenho certeza que, em alguns anos, esse valor irá dobrar. É uma grande herança para a humanidade”, afirma Lotoro. 

Os itens musicais foram recuperados de campos civis e militares, partituras às vezes escritas em embalagens de comida ou em papel higiênico, além de gravações —lembranças colhidas de sobreviventes— preservadas precariamente em diferentes suportes de áudio e vídeo. Dentro desse material há obras que foram salvas pelos próprios soldados nazistas.

A cifra não particulariza exclusivamente as composições de prisioneiros judeus, mas inclui igualmente a atividade musical de outros grupos arbitrariamente aprisionados por regimes de exceção no período entre 1933 (ascensão de Hitler) e 1953 (morte de Stálin).

Lotoro esteve em São Paulo no mês passado para participar da 42ª Mostra de Cinema, na qual foi exibido o documentário “O Maestro em Busca da Última Música”, que narra sua trajetória e foi dirigido pelo argentino Alexandre Valenti.

Sua presença aqui atraiu a atenção do regente e pianista brasileiro João Carlos Martins, que —com sua personalidade inquieta e grande capacidade de mobilização— deu os passos iniciais para uma colaboração que poderá gerar uma turnê com repertório exclusivamente composto por judeus que ficaram presos em campos de concentração.

Com o apoio logístico do empresário Marcos Arbaitman, Martins pretende viabilizar apresentações em quatro países: Brasil, Estados Unidos, Itália e Israel.

“Minha língua materna [alemão] é a língua dos assassinos de minha mãe”, escreveu o poeta romeno Paul Celan, ele mesmo sobrevivente de um campo de trabalhos forçados. 

Se as tensões entre realidade e ficção nos relatos traumáticos de guerra —que compõem a chamada “literatura de testemunho” — têm alcançado considerável status canônico nos estudos literários, a  música que emerge recuperada, restaurada e editada por pesquisadores como Lotoro ainda quase não encontra espaço. Seja como parte ativa dos ambientes universitários ou integrando programas de concertos.

Ele dirige, em Barletta, a Fundação Instituto de Literatura Musical dos Campos de Concentração. Seu projeto obteve apoio do governo italiano para a construção do Museu da Memória dos Compositores Judeus do Holocausto em uma antiga usina desativada da cidade.

Há de tudo no material já publicado pelo Instituto, das pequenas peças de músicos de ocasião a obras de compositores com ampla formação —como Viktor Josef Ullmann, discípulo de Arnold Schönberg, assassinado em Auschwitz na câmara de gás.

Ou Józef Kropinsky, polonês que sobreviveu aos campos de Auschwitz e Buchenwald, tendo produzido quando prisioneiro 117 canções, peças corais, quartetos, peças para piano e orquestra, uma ópera, uma opereta e cerca de 400 arranjos. Libertado após a Grande Guerra, abandonou a composição.

Para Lotoro, a ressonância íntima da música tem algo de incontestável, e ela pode ter se tornado, em muitos casos, a única réstia de sentido no mundo do não ser.

Não há como abstrair o contexto diante da sonoridade dessas peças; tocar ou cantar essa música impõe algo à escuta, para além dos rigores formalistas. “Mesmo diante da perspectiva da morte, a criatividade dos artistas persistia.”

Na “Antologia Musicale Concentrazionaria” (2015), editada por Lotoro, há duas singelas peças para violão de autoria de Robert Emanuel Heilbut, holandês nascido em 1919, aprisionado inicialmente no campo de Westerbork (Holanda) e transferido em 1943 pra Bergen-Belsen, na Alemanha (mesmo local onde morreram Anne Frank e sua irmã).

Suas peças para violão solo —ao lado de um duo de violões, um duo de flauta e clarinete e um trio para sax soprano, sax alto e trombone, igualmente publicadas na antologia— são arranjos de música tradicional holandesa. 

Seria a combinação inusitada de instrumentos o indício de terem sido criadas para uma possível apresentação entre os prisioneiros? É difícil saber.

A melodia de caráter popular é cuidadosamente harmonizada ao violão, com encadeamentos que lembram alguns dos clássicos estudos do espanhol Fernando Sor. O bom gosto impera.

Não há insatisfação ou ironia nessa música: ela é pura, doce, evocativa e nostálgica. Também não se pode dizer que é difícil de tocar, mas parece exigir timbres introspectivos e tempos pessoais.

Em 1945, durante o processo de liberação dos campos de concentração, centenas de milhares de pessoas ainda morreriam de doenças diversas, sem conseguir voltar para casa; assim como a adolescente Anne Frank, morta aos 15 anos, o compositor Robert Heilbut foi uma dessas pessoas. Ele tinha 26 anos.
Tocar sua música pode ser um modo de manter isso vivo na memória.

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