No dia do AI-5, garotinho consegue autógrafos da cúpula da ditadura

Historiador Pedro Corrêa do Lago conta como obteve assinaturas em 13 de dezembro de 1968

Pedro Corrêa do Lago

Com nove ou dez anos, tive vontade de colecionar alguma coisa. Como quase toda criança da minha geração, a primeira ideia foi juntar selos. Um irmão mais velho já colecionava moedas e os selos me pareciam o caminho mais fácil.

Pouco havia ouvido falar em autógrafos, uma terceira opção que talvez nunca me ocorresse, não fosse uma decisão autocrática da minha mãe que acabou se revelando um dos grandes favores que ela me fez na vida.

Minha mãe admirava muito um irmão de seu pai que morrera cedo e formara uma belíssima coleção de selos brasileiros. Sua viúva não hesitou em vendê-la por três tostões, poucas semanas após sua morte.

Autógrafos que Pedro Corrêa do Lago recolheu de políticos no dia da assinatura do AI-5
Autógrafos que Pedro Corrêa do Lago recolheu de políticos no dia da assinatura do AI-5 - Reprodução

Não sei exatamente por que, mas essa história do tio chocou muito minha mãe, que passou a detestar selos e simplesmente me proibiu de colecioná-los. O que me pareceu na época uma imposição absurda acabou mudando a minha vida.

Proibidos os selos (e as moedas sendo já exclusividade do meu irmão), sobraram-me os autógrafos. “Como consegui-los?”, pensou o menino inquieto que eu era e que lera em algum lugar que as pessoas compravam um álbum para recolher as assinaturas de pessoas famosas. 
 

Lembro-me de ter ido a uma papelaria escolher um caderno bonito de capa preta imitando couro, que pedi de presente a meus pais. Faltava agora encontrar as tais “pessoas famosas”.
 

Pouco depois, em agosto de 1968, meu pai fez 50 anos. Lembro-me de uma grande festa na casa em que morávamos, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Meu pai era diplomata e conhecia muita gente do governo e com isso pude pedir nessa noite a assinatura do governador da época, Francisco Negrão de Lima, que inaugurou meu “álbum de autógrafos”.

O colecionador de manuscritos Pedro Corrêa do Lago - Karime Xavier/Folhapress

Muitos anos depois eu deixei de me interessar por simples assinaturas (que afinal só provam que a pessoa sabe escrever seu próprio nome). Apaixonei-me por cartas, documentos e manuscritos que acumulei com paixão nos últimos 50 anos, e acabei formando uma coleção com dezenas de milhares de peças, que começou com o caderninho preto da minha infância.

Voltando a este, em dezembro de 1968 meu pai convidou os filhos para assistir a uma cerimônia da Marinha na qual ele seria condecorado, juntamente com dezenas de outras pessoas, com a Ordem do Mérito Naval. 

Para um menino daquela época, sair de manhã para o Arsenal de Marinha era um programão, e lá fui eu com meu pequeno álbum, esperando que comparecessem alguns figurões que eu pudesse atacar.

As famílias dos homenageados acabaram num lado do palanque parecido com o que chamamos hoje de “curralinho VIP”. E lá ficou o menino de dez anos perto do então presidente, o marechal Costa e Silva, e todo o seu ministério, reunido para a ocasião.

Um amigo de meus pais já havia obtido de Costa e Silva uma dedicatória que eu colara em meu álbum. Com isso, não me interessei muito em lhe pedir que o assinasse novamente, mas os ministros estavam todos lá, entre os quais o único vivo hoje, Antonio Delfim Netto, então o superpoderoso ministro da Fazenda.


Solicitei um por um, e todos gentilmente atenderam ao pedido do garotinho com o álbum preto na mão, e deixaram numa mesma página seu nome e a data. Voltei para casa feliz com aquilo que me parecia uma rara reunião de assinaturas de todo o ministério brasileiro naquele momento.

Não podia imaginar que a página adquiriria algumas horas mais tarde um significado especial. Na tarde daquele mesmo dia foi editado o famigerado AI-5, cujo cinquentenário é lembrado nesta semana.

Foto do colecionador de manuscritos Pedro Corrêa do Lago, aos 10 anos de idade
Foto do colecionador de manuscritos Pedro Corrêa do Lago, aos 10 anos de idade - Arquivo Pessoal


A página aqui reproduzida traz o jamegão orgulhoso do idealizador do Ato Institucional, “Luís Antônio da Gama e Silva, ministro da Justiça, 13 de dezembro de 1968” (que assinou já sabendo que aquela data seria memorável), seguido de Helio Beltrão, José Costa Cavalcanti, Delfim Netto, Leonel Miranda, Albuquerque Lima e Aurélio de Lyra Tavares.

Naquela mesma noite, lembro-me de meu irmão, já adolescente e politizado, deprimido com aquilo que adivinhava como um  terrível retrocesso. Eu, na inocência dos meus dez anos, não entendia sua tristeza e só pensava em comemorar a nova página preenchida de meu álbum de autógrafos.

Pedro Corrêa do Lago é editor, historiador e um dos maiores colecionadores de manuscritos do mundo.

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