Descrição de chapéu

Pop de Rosalía tem a coragem de buscar novos poemas em dores antigas

Cantora e compositora espanhola parte do centenário flamenco para criar música provocante

Sidney Molina

El Mal Querer

  • Preço R$ 19,90 (para download) e nas plataformas digitais
  • Autor Rosalía
  • Gravadora Sony

"É o mesmo que cantar / num deserto sem sombra/ em que a voz só dispõe / do que ela mesma ponha." Extraídos de "A Palo Seco", os versos áridos de João Cabral de Melo Neto (1920-99) podem ajudar a caracterizar a força do (assim chamado) flamenco-pop da cantora e compositora Rosalía.

Em curtíssimo tempo, a espanhola de 25 anos lançou dois álbuns instigantes: "Los Ángeles" (2017) e "El Mal Querer" (2018). Em 2017, foi indicada ao Grammy Latino na categoria Artista Revelação (não ganhou); em 2018 foram 5 indicações e 2 prêmios.

Quem puxa a premiação é "Malamente", cujo vídeo já supera 44 milhões de visualizações. A estaticidade eletrônica da base, temperada por palmas andaluzas, sustenta a montagem das camadas sonoras, a virtuosa passagem dos acontecimentos de um canal a outro, e voz colocada com a certeza de quem carrega consigo uma tradição centenária. Rosalía canta em espanhol.

No álbum anterior, "Los Ángeles", coproduzido com Raül Refree, ela transforma o que poderia ser a apresentação natural de uma "cantaora" flamenca em algo a mais: os "palos" sofrem metamorfoses sutis, como se buscassem ganhar a assinatura única das canções autônomas; o violão por vezes parece fugir do "cante", abandonando ao léu a lâmina cortante da voz.

Em "Si Tu Supieras Compañero", a primeira faixa do primeiro CD, Rosalía surgia também como uma "Björk de Sevilla", e basta chegar a "Catalina" para reconhecer que seus temas serão a morte, o amor, o desespero, a dor.

Um passo duplo (e arriscado) foi dado em "El Mal Querer", em que seu parceiro-produtor passa a ser Pablo-Díaz Reixa (conhecido por El Guincho). São 11 "capítulos", faixas com título duplo sobre um relacionamento atormentado, inspiradas em texto anônimo do século 13. A estratégia tenta exigir a escuta integral --e na sequência-- do álbum.

Assim, "Malamente" é ao mesmo tempo "Augúrio", ao que se seguem "Casamento", "Ciúmes", "Disputa", "Lamento", "Clausura", "Liturgia", "Êxtase", "Concepção", "Prudência" e, enfim, "Poder", um curto epílogo em que ela canta: "Vou tatuar na pele/ tua inicial, porque é a minha/ para recordar para sempre / do que me fizeste um dia".

O "cante a palo seco", sem guitarra, despido, surge em vários momentos ("De Aqui no Salles", "Nana", "A Ningún Hombre"); palmas se separam da textura e sobram sozinhas ("Bagdad"); cordas entram em "Lamento"; um arpejo bachiano provoca grande estranhamento em "Maldición".

"El Mal Querer" é provocante e incompleto. Prefere silêncios e distorções a limpezas e transparências.
Rosalía está apenas começando, mas já não cabe em seus álbuns; disponível no YouTube, sua interpretação do clássico argentino "Alfonsina y el Mar" atesta a coragem de buscar novos poemas em dores antigas.

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