Premiado, 'Lazzaro Felice' dialoga com tradição do cinema italiano

Longa de Alice Rohrwacher trata de camponês que não envelhece

Adriano Tardiolo e Luca Chikovani em cena de 'Lazzaro Felice', de Alice Rohrwacher

Adriano Tardiolo e Luca Chikovani em cena de 'Lazzaro Felice', de Alice Rohrwacher Divulgação

Guilherme Genestreti
Cannes (França)

Um dos melhores filmes de 2018, “Lazzaro Felice” é italiano até o talo. 

Há um quê da tradição fabular de Italo Calvino nessa história sobre um camponês que nunca envelhece, e algo do melhor da tradição cinematográfica daquele país (sobretudo Pasolini) em torno desse cenário onde referências simbólicas cristãs se misturam a um discurso marxista. 

O longa de Alice Rohrwacher, vencedora do prêmio de roteiro no último Festival de Cannes, foi abocanhado pela Netflix e pulou os cinemas. Chegou na grade do serviço sob demanda neste mês.

O Lazzaro do título é um sujeito meio “stronzo”, um rapaz que é feito de besta pelos demais camponeses. Eles, por sua vez, são explorados por uma marquesa em um regime de servidão como se vivessem na Idade Média. Mas tudo se passa em algum momento dos anos 1990, a julgar pela onipresente dance music dos aparelhos de walkman.

Quando parte desse mesmo grupo reaparece nas periferias contemporâneas de Roma, por razões que não merecem ser detalhadas para não estragar a surpresa, fica evidente que o que Rohrwacher quer é tecer comentários sociais.

“Queria olhar para o presente como herança de uma fratura”, disse a diretora italiana a este repórter, em Cannes, onde o filme estreou. “No meu país as pessoas saíram do campo atraídas pela modernidade, e não podemos nos esquecer que por trás disso houve exploração e sofrimento.”

Apesar de suas declarações, a tessitura social é só uma das várias camadas do filme. Mesmo a religião, que dá as caras como reforço do status quo de exploração dos campesinos, inspira outras considerações. 

Dá para ver ressonâncias de certo cristianismo primitivo, pasoliniano, na figura de Lazzaro e sua abnegação em nome da vontade de todos os outros. Adiante, alusões a são Lázaro, o santo que teria ressuscitado, ficarão evidentes.  

A diretora extrai esses traços de santidade de Adriano Tardiolo, dono de olhar ingênuo e que nunca havia atuado. 

“Sabíamos que precisávamos de alguém que emanasse um brilho”, conta a diretora, que achou seu ator principal batendo de escola em escola e xeretando nas salas de aula. “Ele tem uma beleza renascentista. Mas é uma beleza que não é nada consciente.”

Tardiolo, de 20 anos, empresta sua aura inocente para o protagonista. No início, surge camuflado entre os servos da gleba. Impera um clima meio bufão entre os tipos matutos —a vovó diminuta que tem de ser carregada para toda parte, as moçoilas que fazem troça dos seresteiros...

O exato oposto de Lazzaro é Tancredi, o filho voluntarioso da marquesa que é interpretado pela webcelebridade local Luca Chikovani. Ele quer chantagear a mãe e simula o próprio sequestro. Conta, para isso, com os préstimos do protagonista, que ele ludibria.

O plano é o ponto de partida para uma guinada na história, que modificará cenário e até o tom do filme. E das reminiscências rurais dos irmãos Taviani de “Pai Patrão”, ele fica mais parecido com a sordidez suburbana do Ettore Scola de “Feios, Sujos e Malvados”.

É por esse novo universo, corrompido, que se verá metido o personagem principal.

“Lazzaro é uma possibilidade de viver nesse mundo”, diz Rohrwacher. “Não sabemos nada sobre ele, mas o vemos como a personificação da inocência. E isso nos lembra de que ela é uma possibilidade.”

Lazzaro Felice
Itália, França, Suíça, Alemanha, 2018. Direção: Alice Rohrwacher. Elenco: Adriano Tardiolo, Luca Chikovani, Alba Rohrwacher. 12 anos. Disponível na Netflix

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