Ritual indígena inspira nova peça de André Mehmari no Municipal

Composição para coro, orquestra e voz feminina tem solo de Marlui Miranda

Sidney Molina
São Paulo

"Quando o português chegou debaixo de uma bruta chuva, vestiu o índio, que pena; fosse uma manhã de sol e o índio teria vestido o português de pena."

A frase simétrica —que pode ser encontrada em diversas versões desde Oswald de Andrade— integra o texto de "Torém: O Índio e o Mar", cantata de André Mehmari para orquestra, coro e voz feminina.

A estreia é neste domingo (16), no Theatro Municipal, com a Orquestra Experimental de Repertório dirigida por Jamil Maluf (uma segunda performance ocorre em 27 de janeiro). O espetáculo tem a cantora Marlui Miranda como solista e conta com o Coro Adulto da Escola Municipal de Música.

Ao encomendar a obra, Maluf pretendia estimular a utilização dos elementos musicais indígenas como matéria composicional, já que eles "têm sido pouco explorados pelos músicos sinfônicos brasileiros".

Orquestra Experimental de Repertório com maestro Jamil Maluf Clarissa Lambert/Divulgação
Orquestra Experimental de Repertório com maestro Jamil Maluf  - Clarissa Lambert/Divulgação

De fato, as gerações modernistas posteriores a Villa-Lobos trabalharam predominantemente sobre as matrizes africanas (exceções são o próprio Villa e o pernambucano Marlos Nobre).

Desde a década de 1970, no entanto, um mergulho qualificado nas tradições dos povos indígenas foi empreendido por artistas como Egberto Gismonti e pela própria Marlui Miranda, que passou a devotar sua carreira a essas múltiplas vozes.

Aos 41 anos, Mehmari ostenta um catálogo de encomendas orquestrais que suplanta o de muitos veteranos. Sua escrita idiomática traduz o prazer físico de fazer música, o que tende a agradar aos próprios intérpretes.

A Folha acompanhou na semana passada dois ensaios de preparação da obra: pode-se dizer que, com "Torém" —a palavra é o nome de um ritual dos índios tremembés, do Ceará—, a proverbial fluência narrativa do compositor se alia a uma interessante economia de meios.

O virtuosismo, aqui, está também na amarração e na não gratuidade dos elementos.

Os tremembés são pescadores que sempre viveram próximos ao litoral. "Água de Maní" (a expressão remete ao cultivo da mandioca) é o motivo condutor, uma melodia equivalente às notas lá-lá-lá-si-dó; dó-ré-dó-dó-dó-si-lá, cantada no idioma indígena, desenvolvida em desafiadores jogos rítmicos e pintada em timbres variados.

Intermezzos orquestrais, trechos corais e solos vocais se articulam sem cortes ao longo de 25 minutos. Um segundo tema —com jeito de canção folclórica— é utilizado como contraste.

Ao final, o mote indígena volta alterado, quase querendo assumir cara nordestina; é quando, então, uma parte do coro que não está no palco toma conta do espaço e dos tempos.

O que Mehmari propõe é ao mesmo tempo singelo e ambicioso: depois de vestir os cantos tremembé com o que de melhor temos a oferecer, ele pede simplesmente que a gente volte ao princípio e aprenda, de verdade, a cantar essa música.

Torém: O Índio e o Mar

Marlui Miranda e Orquestra Experimental de Repertório. Dom. (16), às 12h. Theatro Municipal de São Paulo, pça. Ramos de Azevedo s/n. R$20. Livre

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