Descrição de chapéu Artes Cênicas

Bete Coelho e Daniela Thomas preparam releitura de 'Mãe Coragem', de Brecht

Distopia do mundo contemporâneo influencia nova montagem de 'Mãe Coragem', marco do dramaturgo alemão

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São Paulo

Há seis anos, quando buscava parceiros para encenar “Mãe Coragem”, a atriz Bete Coelho ouviu que a peça alemã escrita nos anos 1930, contra o militarismo em ascensão, era distópica.

Que a história da vendedora ambulante que festeja a chegada da guerra, lucra com seus horrores e leva os três filhos à morte havia se descolado da realidade contemporânea.

Agora, a atriz e a diretora Daniela Thomas preparam o espetáculo tendo que conter as intromissões da distopia crescente, no mundo e no Brasil, sobre a peça.

Daniela, por exemplo, projetou um cenário de lama, mas um dia antes de falar ao jornal houve o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, e ela já se questiona.

A ideia não é fazer um espetáculo com referência direta à realidade política brasileira. O próprio autor, Bertolt Brecht, morto aos 58, em 1956, optou por transferir a ação para a Guerra dos 30 Anos, conflito que durou de 1618 a 1648.

Mas os vínculos são incontornáveis, começando pelo que a diretora chama de “vitimização do pequeno empresário”, tanto na peça quanto no país. “O grande perdedor do Brasil virou o empreendedor. E é a própria Mãe Coragem.”

A ética empresarial da vivandeira, parasita da guerra, ecoa nos depoimentos dos empresários ilusórios, nas madrugadas da TV Record e na recusa crescente ao trabalho formal.

Seu apelido vem daí, de priorizar o negócio sobre a própria vida, como ela diz na peça: “Me chamam de Coragem, sargento, porque cheguei a atravessar o campo de batalha, debaixo de fogo cruzado, com 50 pães na carroça; os pães já estavam embolorando”.

Para acadêmicos como Emily Bell, da Universidade Columbia, a degradação do trabalho hoje, substituído por empresários de carroça, ajuda a explicar o irracionalismo nas plataformas digitais —e a eleição, entre outros, de Donald Trump.

Ela, como muitos, vê o planeta em meio a uma nova revolução industrial, tecnológica, a exemplo daquelas do século 19 que abriram caminho ao fascismo e às grandes guerras alegorizadas por Brecht.

Para Sérgio de Carvalho, diretor e professor de teatro da USP, especializado em Brecht, em “Mãe Coragem” o autor enfatiza que “os processos históricos são maiores que os personagens”, a começar pelo “vínculo entre capital e militarismo, muito atual no Brasil”.

O próprio Brecht, em suas notas sobre a peça, que também dirigiu, afirma que ela concebe “a guerra como um prolongamento dos negócios por outros meios”.

Marcos Renaux, que está em sua quarta tradução de Brecht, acrescenta que o dramaturgo alemão, então exilado do nazismo, busca nela “falar da ameaça de guerra” no final dos anos 1930, como um alerta. “E serve para hoje”, acrescenta.

Mas não, “Mãe Coragem” não vai tratar diretamente da realidade mundial e brasileira. “Quando você fala em fascismo, em autoritarismo, vem naturalmente”, diz Daniela.

“Não precisa falar ‘Bolsonaro’. Até comendo no bandejão ele é a mulher do Brecht!

Um dos aspectos da economia contemporânea a serem explorados pela encenação, que ainda não tem data de estreia, é o isolamento individual, nas redes sociais, que será contrastado com o contato físico de espectadores e elenco.

“Plateia e atores vão dividir o mesmo espaço”, diz a diretora, que projeta o espetáculo para um ginásio, no aguardo do Sesc Pompeia. “Num momento de falta de convívio de corpo, o que interessa é o antídoto a essa experiência cada vez mais virtual.”

Vai reforçar assim o chamado rompimento da quarta parede, a comunicação direta entre ator e espectador, defendida por Brecht.

Daniela e Bete sabem que estão se arriscando num terreno movediço de doutrinas pós-brechtianos, parte de um establishment teórico que pode se revoltar com as criações de “uma carioquinha e uma mineirinha”.

Evitam se alongar sobre o chamado efeito de distanciamento, sobre os mecanismos desenvolvidos pelo dramaturgo e diretor para tentar escapar da identificação do espectador com os personagens, levando-o a raciocinar. 

Mas já se preparam para enfrentar o maior obstáculo da Mãe Coragem, que tanto preocupava Brecht: a empatia que ela provoca, a ponto de levar o público às lágrimas mesmo depois de causar a morte dos filhos, mesmo sendo, como ele descreve nas notas, uma “alma amaldiçoada”.

No Brasil, o papel estreou com Lélia Abramo em 1960 e já então o diretor Alberto D’Aversa precisou se explicar, mais até, se desculpar, porque a atriz se “identificou com a personagem” e o público acabou sendo “arrebatado pela emoção”.

Bete Coelho diz que, assistindo ao filme da montagem histórica de 1949, encenada por Brecht e protagonizada por sua mulher, Helene Weigel, percebeu como “ela é imbatível”, mas ainda provoca proximidade, empatia.

“Talvez eu consiga uma certa antipatia, uma visão crítica”, acrescenta, sem detalhar como, por exemplo, pretende responder ao célebre “grito mudo” desenvolvido por Helene Weigel para Mãe Coragem —quando ela se vê diante do corpo de um dos filhos e não pode denunciar que é sua mãe, o que levaria à sua própria morte.

Renaux traduziu a peça diretamente do original publicado pela editora alemã Suhrkamp, mas com alguma inspiração paralela na recente adaptação do dramaturgo Tony Kushner para as montagens protagonizadas por Meryl Streep em Nova York e Fiona Shaw em Londres.

Renaux e Kushner não negam a empatia de “Mãe Coragem”, pelo contrário. Para Renaux, a peça há muito ultrapassou os ditames do chamado teatro épico, de Brecht, “para ser um dos dramas 
definidores da humanidade”.

TRECHOS

Sargento - Logo se vê que faz tempo que não acontece uma guerra por aqui. A paz é um descuido, só a guerra põe as coisas no seu devido lugar. É um desperdício. De gente, de gado, de tudo. Eu já estive em lugares em que não havia guerra fazia mais de 70 anos. Só durante a guerra é que se põem os registros e as listas em ordem. E sem ordem não há guerra!

(...)

Jovem - [Sinos começam a dobrar] Escuta, mãe!

Vozes vindas de trás - Paz!

Mãe Coragem - [Põe a cabeça para fora da carroça. Ainda está descabelada] Por que esses sinos? Ainda é quarta-feira!

Jovem - Mãe, paz! O que deu em você? [A velha perde os sentidos ...]

Mãe Coragem - Estou arruinada. A paz veio feito uma corda no meu pescoço. Eu acabei de comprar um monte de mercadoria. Agora vai todo mundo se mandar e eu vou ficar aqui sentada em cima de todo esse estoque.

‘Mãe Coragem’
Autor: Bertolt Brecht. Trad.: Marcos Renaux

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