Mostra sobre inteligência artificial e biotecnologia é censurada na China

Trienal de Guangzhou retirou obras de artistas por incompatibilidade com os hábitos do país

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Amy Qin
Hong Kong | The New York Times

Robôs de inteligência artificial. Órgãos humanos produzidos em impressoras 3D. Sequenciamento genômico. 

Esses podem parecer assuntos de interesse em um país determinado a liderar o mundo em ciência e tecnologia. Mas na China, onde os censores são conhecidos pela mão pesada, diversas obras de arte que observam de perto esses avanços científicos foram proibidas por autoridades culturais locais.

'The Modular Body', uma história online de ficção científica sobre o uso de células humanas e órgãos artificiais para criar um organismo vivo, do artista holandês Floris Kaayk
'The Modular Body', uma história online de ficção científica sobre o uso de células humanas e órgãos artificiais para criar um organismo vivo, do artista holandês Floris Kaayk - Divulgação

As peças, que despertam questões sobre as implicações sociais e éticas da inteligência artificial e da biotecnologia, foram retiradas abruptamente, às vésperas da inauguração da Trienal de Guangzhou, por ordem das autoridades culturais da província de Guangdong, no sul da China.

Os artistas, da Europa, Austrália e Estados Unidos, não foram notificados sobre um motivo oficial para a rejeição de suas obras para a mostra,  aberta dia 21 de dezembro no Museu de Arte de Guangdong.

As peças não mencionam a repressão ao movimento democrático da praça Tienanmen, em 1989, ou falam sobre independência para o Tibete e Taiwan, ou sobre a riqueza pessoal dos dirigentes do Partido Comunista —tópicos que são sabidamente considerados como tabus, em termos de discussão pública na China.

Como resultado, alguns dos curadores da mostra e os artistas envolvidos estão tentado adivinhar os motivos para a proibição. A conclusão deles? As peças talvez fossem oportunas demais, relevantes demais, e com isso desconfortáveis demais para as autoridades chinesas.

“Há muita preocupação nos noticiários com a edição genética de bebês”, disse Heather Dewey-Hagborg, artista americana cuja peça “T3511” foi uma das removidas da mostra. “Parece, claramente, que vivemos um momento em que posso imaginar que qualquer arte ou qualquer forma de conteúdo que lide com futuros biotecnológicos e com algumas vulnerabilidades e lados sombrios desses futuros poderia ser considerada perigosa”.

Dewey-Hagborg estava se referindo à explosiva revelação, em novembro, de que o cientista chinês He Jiankui havia criado os primeiros bebês editados geneticamente no planeta. Depois do anúncio, cientistas chineses criticaram a conduta de He, definindo-o como leviano e antiético.

Diante desse pano de fundo, um trabalho como “T3511”, que Dewey-Hagborg produziu em colaboração com Toshiaki Ozawa, pareceria especialmente oportuno. 

O vídeo conta a história fictícia de uma biohacker que se deixa obcecar por uma amostra de saliva de um doador anônimo, que ela adquire online. Ao analisar o DNA da saliva, e com a ajuda de um site de genealogia, ela consegue identificar o doador. 

Dewey-Hagborg diz que o objetivo do vídeo é propor questões sobre a mercantilização da biologia, a privacidade e a ética biológica.

Mas, na China, as autoridades costumam ser estimuladas a errar pelo lado da cautela, e a priorizar a estabilidade social acima de tudo, e, portanto, provocar debates públicos com questões duras sobre ética nem sempre é bem recebido.

Angelique Spaninks, diretora do MU, um espaço de arte independente na Holanda, e uma das curadoras da Trienal de Guangzhou, disse que “as questões de privacidade me causam desconforto, e é isso que faz da instalação uma peça forte”. Mas qualquer coisa que crie desconforto, ela diz, “causa nervosismo às autoridades”.

Entre as demais peças proibidas está “The Modular Body”, uma história online de ficção científica sobre o uso de células humanas e órgãos artificiais para criar um organismo vivo. Criada por um artista holandês, Floris Kaayk, a peça tem por objetivo questionar o potencial da impressão 3D de órgãos humanos, a extensão da vida com ajuda da tecnologia, e o desejo de projetar a vida do zero.

Também retirada da mostra foi “im here to learn so :))))))”, de Zach Blas e Jemima Wyman, um vídeo em quatro canais que ressuscita Tay, um robô de inteligência artificial criado pela Microsoft em 2016 e treinado por usuários para se tornar um fanático intolerante, o que levou à sua desativação em apenas um dia. 

De acordo com Blas, os dirigentes de museus chineses inicialmente pediram o corte de duas linhas de diálogo no vídeo (um palavrão e uma referência a Adolf Hitler), antes que as autoridades culturais decidissem retirar toda a peça, que também lida com questões de feminismo.

Um trabalho do artista londrino Lawrence Lek também foi retirado da mostra, onde integraria um vídeo multicanais de Harun Farocki, cineasta que morreu em 2014, de acordo com os curadores.
Huang Yaqun, diretor assistente de assuntos acadêmicos no Museu de Arte de Guangdong, instituição estatal que organiza a trienal, disse que a decisão de cortar as peças se baseava em parte em sua “incompatibilidade com os gostos e os hábitos culturais do povo de Guangdong”.

Ainda que algumas pessoas tenham sido apanhadas de surpresa apela decisão de retirar peças no último minuto, esses revezes são ocorrência frequente para muita gente nos círculos da arte chinesa, quando é hora de lidar com o processo de revisão pelos censores do país, muitas vezes imprevisível.

Contrariando a ideia de que o aparato de censura chinês seja monolítico e todo-poderoso, o esforço para conseguir aprovação das autoridades culturais para uma mostra envolve muitas vezes negociação constante e um esforço para equilibrar forças conflitantes, e pode depender de fatores que incluem as autoridades específicas que estão encarregadas da censura e como anda a situação local.

Os organizadores de exposições muitas vezes se veem forçados a desenvolver estratégias espertas para contornar ou acalmar os censores.

“Usualmente, eles rejeitam obras que mencionem assuntos políticos ou internos, e nudez”, disse Victoria Jonathan, diretora do Festival Internacional de Fotografia Jimei x Arles International Photo Festival, realizado anualmente na cidade de Xiamen, sul da China, em parceria com o Rencontres de la Photographie d’Arles.

A China não é o único país a retirar de mostras imagens que considere potencialmente perturbadoras. No ano passado, o Museu Guggenheim retirou três peças de artistas chineses produzidas para uma exposição muito aguardada —entre as quais uma que mostrava pitbulls em esteiras rolantes—, depois que ativistas dos direitos animais e de outras organizações pressionaram os organizadores da mostra “Art and China After 1989: Theater of the World”. Alguns críticos afirmaram que o Guggenheim deveria ter aproveitado o momento para engajar o público quanto à arte difícil.

Ainda que Spaninks, a curadora da trienal de Guangzhou, tenha se declarado desapontada com a decisão de retirar as peças, ela esperava que o material restante da mostra, intitulada “As We May Think: Feedforward”, provoque debate sobre o futuro da ciência e da tecnologia. Presumindo que não haja novos cortes na mostra, que estará em cartaz até 10 de março, ela contempla mais de 40 artistas, entre os quais Lynn Hershman Leeson, Wang Yuyang e Tega Brain.

Ainda assim, Kaayk, que diz ter trabalhado meses para preparar “The Modular Body” para a mostra, só para descobrir no último minuto que estava excluído, se declarou “muito frustrado”, em uma mensagem de email.

“A arte contemporânea não deveria propor questões, iniciar discussões sobre assuntos importantes da atualidade e para o futuro próximo?”, ele escreveu. “Quais são os motivos da China para organizar essas grandes e dispendiosas manifestações de ‘arte contemporânea’ se essas questões —o cerne da arte contemporânea, a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento— são ignoradas e solapadas?”


The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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