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Cinema

Noé está mais ameno, porém não menos negativo no filme 'Climax'

Alguém jogou LSD no ponche e o que era vasto desencontro descamba para um furioso acerto de contas

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Climax

  • Quando Estreia nesta quinta (31)
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Sofia Boutella, Romain Guillermic, Souheila Yacoub
  • Produção França, Bélgica, EUA, 2019
  • Direção Gaspar Noé

Há seis décadas, um pouco mais talvez, Aldous Huxley falava das portas da percepção: do autoconhecimento, da hipótese aberta pelas drogas de observar as coisas com mais atenção e profundidade.

Era, nos Estados Unidos, o tempo dos beatniks. Viriam logo depois o LSD e a crença na libertação da consciência pelos alucinógenos. Certo ou errado, dizia respeito a um tempo em que a transformação do mundo era um valor.

No mundo que Gaspar Noé observa em “Climax”, o de hoje, o LSD tem outro papel. Estamos no ensaio de um grupo de dança. Depois, vem a festa. Festa significa circulação entre corpos. Sensualidade e sexualidade. Mas algo bate diferente. Há corpos em relevo. No entanto, existe certa indiferença na comunicação entre eles.

É menos uma festa da carne como da indiferença. Existe uma sintomática variedade de tipos: brancos, negros, árabes, homossexuais, bissexuais... Noé parece nos conduzir a uma cultura da indiferença. Quem fica com quem? Com uma ou outra exceção, parece que tanto faz.

Aliás, quase não se distinguem os personagens. E não são poucos: um grupo inteiro de dançarinos. Uma exceção: a mãe. Ela e seu filho. Ela transou não sabe com quem e engravidou. O filho é sua vida (em Noé, a vida é, em si, um valor: um ponto sobre o qual insiste).

Mas eis que esse filme quase sem história conhece uma virada: alguém jogou LSD no ponche que deveria animar a festa. O que era vasto desencontro de cada um consigo, em que o outro a rigor não existe, apenas serve como parede ou espelho, descamba para um furioso acerto de contas.

Do narcisismo em grupo, o grupo é transportado para a desrazão. Quem quiser julgue como preferir, mas esse estado de perturbação alucinógena casa muito bem com o tipo de trabalho de câmera caro a Gaspar Noé, com longos planos em que a câmera está ora torta, ora desequilibrada, ora até de ponta-cabeça.

Pois estamos num mundo pelo avesso também. Numa espécie de vale-tudo em que a simples suspeita de que alguém tenha colocado o LSD no ponche pode levar a vitima a ser atirada para fora do galpão (ou seja, na neve).

O que era um conjunto de afinidades precárias, transitórias, torna-se transtorno coletivo. É quando o espectador se surpreende: essas pessoas que passam do controle completo sobre o corpo à insânia não pertencem a um universo tão distante. Parecem muito, aliás, com uma metáfora dos desastres da razão, com toda a intolerância, a falta de discernimento, o desejo quase incontrolável de destruição.

Se em seu filme mais famoso (e escandaloso), “Irreversível”, Noé nos introduzia a um mundo insuportável (cuja culminância é a cena de estupro, ao mesmo tempo boa e infame), para aos poucos buscar certa poesia da normalidade, aqui seu niilismo será mais ameno, mas não menos negativo. 

Talvez mais até. Pois “Climax” deleita-se com ironias como a do cartaz, em que as últimas letras do título, “imax” se destacam. Imax, sabe-se, é um formato cinematográfico contemporâneo que significa “imagem máxima”. Parece ser esse o mundo visado por Noé, em que tudo é visível, transparente, mas nada, a rigor, se deixa ver.

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