Obras com marcas de sangue revelam a força do corpo na arte do MAM

Peças da virada do milênio em mostra de acervo revelam como a carnalidade foi o traço definidor das vanguardas brasileiras

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São Paulo

No fim da galeria, uma imagem engana. A fotografia de Lucia Koch do fundo prateado de uma caixa Tetra Pak evoca um túnel que se arrasta parede adentro ou um belo desenho de verniz metálico, mas não passa de trompe l'oeil meio banal, artesanal.

Os truques ou descompassos visuais pontuam a mais nova mostra de acervo do Museu de Arte Moderna paulistano. Também estão lá os vidros trincados (de mentira) de Iran do Espírito Santo —na verdade, chapas de acrílico recortadas com exatidão milimétrica pelo artista para lembrar uma série de acidentes.

Ou mesmo um grande retângulo vermelho de Rosângela Rennó. Quando vista de perto, a imagem se revela a fotografia de um bebê, recordação perdida de uma família anônima comprada pela artista num mercado de pulgas.

Mas nesse trabalho que fala sobre a erosão da memória também vem à tona um dado central dessa seleção de peças realizadas na virada do milênio —o corpo. Em quase todas as obras, há uma lembrança ou marca corporal, verdadeiro traço definidor da arte criada no Brasil mesmo na era dominada pelo construtivismo.

Essa herança carnal, que remonta à subversão das formas geométricas por neoconcretistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, famosos por levar quadrados e triângulos para a órbita do Carnaval e da orgia, só ficou mais explícita com o passar do tempo e espreita mesmo as peças atuais, de pegada mais seca e maquinal —talvez daí o nome um tanto anódino da mostra, "Passado/Futuro/Presente".

Não estamos mais, de fato, no território das velhas vanguardas. Mas ecos delas, como a nota de zero cruzeiro de Cildo Meireles ou a performance fotográfica em que Anna Bella Geiger reencena poses de índios nos cartões postais da época da ditadura, agora dão as caras nas galerias do MAM.

Nesse ponto, cabe uma explicação. A mostra agora em cartaz é o remake de outra realizada há dois anos com obras da instituição paulistana no Museu de Arte de Phoenix, cidade americana na fronteira com o México onde Trump quer construir um muro para barrar a entrada de migrantes.

O recorte, segundo os organizadores Cauê Alves e Vanessa Davidson, visava desmontar estereótipos da arte brasileira, o clichê de cores vibrantes e tropicais, a sensualidade do corpo, o retrato edulcorado da miséria, o futebol e afins.

E, de fato, outro Brasil surge ali, entregando um contraste ímpar com a estética que americanos de Phoenix estão habituados a ver num cenário atravessado por forte influência hispânica —era outra, portanto, a latinidade que se encenava naquelas galerias.

Mas isso não surpreende o público paulistano. E por aqui a exposição se ancora num esforço de montagem que não deixa de causar certo impacto.

Ou choque. Num dos embates mais belos e fortes da seleção, uma coloridíssima tela de Beatriz Milhazes, aquilo que se espera do país do Carnaval passado por um filtro geométrico, está de frente para uma instalação de Rivane Neuenschwander em que placas brancas de material adesivo cobrem o piso e as paredes de um canto da galeria.

De longe, parece um vazio na trama dos trabalhos expostos, mas um exame mais detalhado deixa ver fios de cabelo, farelos e insetos que grudaram nessas placas ao longo dos dias, uma transposição da sujeira do ateliê da artista para o cubo branco imaculado.

Essa violação da pureza dos espaços da arte se dá de novo pela força do corpo, ou de corpos estranhos, o leitmotif que atravessa a exposição.

Na última ala da mostra, a tinta esverdeada que cobre três telas de Adriana Varejão parece trincar para revelar um fundo vermelho vivo, como sangue que corre por veias e artérias sob a pele plácida.

Lembra as embalagens de cigarro que Jac Leirner batizou pulmão, os caroços que violam as lisas chapas metálicas de Carlito Carvalhosa e as linhas de sangue das navalhadas de Rafael Assef no corpo de sua modelo —o corpo vivo.

Exposições

Passado/Futuro/Presente

Museus

Apresentada em 2017 no Phoenix Art Museum, nos Estados Unidos, a mostra é uma colaboração entre o MAM e o museu americano. Dividida em cinco núcleos, a exposição apresenta 72 obras, assinadas por nomes como Waltercio Caldas, Leda Catunda e Cildo Meireles.

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