Vista à distância, a deposição de Getúlio Vargas, a 19 de outubro de 1945, leva a crer que ali se demarcam dois períodos nítidos: o da ditadura derrotada e o da promessa democrática. Mas de perto tudo se torna mais complexo, quando não menos normal.
Quando de sua queda, Getúlio já não mais era ditador. A abertura do regime do Estado Novo precedeu sua saída forçada do poder: anistia, liberdade de organização partidária, fim da censura e marcação da eleição presidencial —por voto direto— para 1946 configuravam um ambiente de considerável liberalização política.
Por certo muitos dos que a ele se opuseram em 1945 foram movidos pela memória e pela recusa do legado da ditadura. No entanto, os operadores decisivos da deposição —os generais Góes
Monteiro e Eurico Gaspar Dutra— foram chefes militares nos momentos mais duros do Estado Novo (1937-1945).
Dutra, em particular, durante os anos de indefinição de Getúlio diante das forças beligerantes na Segunda Guerra Mundial, pendeu para os países do Eixo. É difícil sustentar que Getúlio Vargas tenha sido apeado do poder por uma coalizão de democratas puro sangue.
Outro aspecto sui generis, presente no quadro da queda de Getúlio, foi o de que ela foi seguida da transferência do governo não a algum dos líderes da oposição ao Estado Novo ou a algum chefe militar. O governo acabou transmitido ao presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, como se tratasse de uma passagem regular de posto, e não de uma deposição por golpe militar.
Mas o capítulo das singularidades não para por aí. Getúlio conservou intactas todas as suas prerrogativas políticas. A turma que andava com faca na boca, por certo, cogitou de banimento, exílio e coisa ainda pior, mas as intenções não passaram aos atos.
O ex-ditador se afastou do governo e refluiu para um dos lugares mais ermos do país, a fazenda Santos Reis, em São Borja, na região fronteiriça entre o Brasil e a Argentina, na qual nem sequer havia
telefone instalado.
Os anos ali passados, ao menos entre 1946 e 1949, foram marcados por curioso padrão de reclusão ativa. Naqueles anos, uma cuidadosa dinâmica de presença e ausência caracterizou a relação de Getúlio Vargas com o país. Sua ausência era ativa, sempre presente e implícita no quadro maior da política nacional.
Nada melhor para auscultar os termos dessa tensão do que as cartas trocadas com sua
filha Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Ao lê-las, tem-se, na verdade, a impressão de que ninguém melhor do que a filha teria ocupado o papel.
Algumas de suas cartas são notáveis. Em um universo totalmente masculino, destaca-se o protagonismo de Alzira Vargas, assim como seu talento analítico.
Muitos se debruçarão sobre os dois belos e bem editados volumes que contém a correspondência havida entre pai e filha, entre 1946 e 1950, movidos pela curiosidade de saber o que “realmente” fez Getúlio Vargas naqueles tempos.
Se for esse o motivo do interesse pelo livro, é grande a possibilidade de alteração de foco —a escrita, a capacidade de análise, a sistematização de informação e, em grande medida, o juízo opiniático de Alzira excedem largamente o limite de seu papel coadjuvante.
Políticos e jornalistas, em enxames de aviões, frequentaram as fazendas de Santos Reis e Itu naqueles idos. Além disso, a correspondência de Getúlio com outros interlocutores não foi interrompida.
Mas o que destaca a mantida entre pai e filha é o fato de que ali havia mais do que envio de informações, charutos e Neambutal: havia análise fina, feita por uma interlocutora inteligente e insuspeita. Na verdade, o conjunto das cartas, pelo nexo entre seus autores, dá a ver a presença um espaço reflexivo compartilhado, no qual o fluxo de informações é submetido à interpretação continuada.
Os temas políticos predominam, por certo, mas há também menções à vida e a personagens da família.
Há, sobretudo, um substrato de paixão e confiança, como suportes de tudo que ali está.
Os anos passados em ativa reclusão foram essenciais para a conversão getuliana e para o roteiro de volta ao Catete. Para tal processo, as observações de Alzira adquiriram o valor de peças de elucidação do quadro político e do lugar de Getúlio na vida do país.
Foram, ainda, anos nos quais se dá a composição de um duplo movimento por parte de Getúlio: do ponto de vista programático, uma inflexão dirigida a algum espaço à esquerda do centro; do ponto de vista pragmático, busca de convergência e apoio, capazes de neutralizar a UDN, sempre hipersensível a tudo que sabia a “queremismo”.
Em luminoso e inédito texto, escrito em 1997 e acrescentado aos dois volumes do livro, Antonio Candido indica as dificuldades de “leitura” do fenômeno Getúlio: por um lado, havia o inegável legado liberticida do Estado Novo; por outro o “coeficiente inovador” do personagem.
Tal coeficiente, ao que parece, foi refinado nos anos de reclusão, nos quais a linguagem tradicional dos direitos sociais e do ativismo estatal convergiu para o campo da política democrática e eleitoral.
Há muitos paradoxos em Getúlio. Não terá sido o menor de todos o fato de que sua consistência política tenha crescido com a deposição de 1945.
Ao ditador desgastado e derrotado, sucedeu o grande ausente, embalado por uma enxurrada de votos obtidos nas eleições legislativas daquele mesmo ano. Concorreu ao Senado por dois estados (Rio Grande do Sul e São Paulo) e à Câmara por seis. Foi eleito em todos eles. Somados os seus resultados, obteve
cerca de 1,1 milhão de votos, uma consagração eleitoral.
Em 1950 obterá cerca de 48% dos votos, ao fim de uma corrida presidencial que em muito se deveu à percepção do tempo político e a um destro manejo das artes da ausência e da presença. Em vários desses meandros, a letra e a mão de Alzira Vargas ajudaram a compor a partitura.
Por fim, a leitura das cartas entre o pai e a filha dão azo à certeza de que tivemos em nossa história política gente digna a montante: não merecemos, pois, o que se promete a jusante.
Renato Lessa é professor associado de filosofia política da PUC-Rio e pesquisador associado do Centre Roland Mousnier, da Sorbonne
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