Berlim revive libertinagem, glamour e boemia dos anos que precederam o nazismo

Dos inferninhos à Berlinale, capital alemã está imersa em nostalgia no centenário da República de Weimar

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O performer Le Pustra, que evoca o centenário espírito libertino da República de Weimar nas noites de Berlim

O performer Le Pustra, que evoca o centenário espírito libertino da República de Weimar nas noites de Berlim Tina Dubrovsky/Divulgação

Berlim

Em meio à fumaça que domina o palco, surge um rosto pálido, empetecado com uma peruca ruiva que lembra a cabeleira de Marlene Dietrich. Abaixo do pescoço, um smoking impecável; acima, maquiagem branca que dá um ar fantasmagórico às feições de boneca melindrosa.

“Boa noite, queridos voyeurs, loucos e sedentos por sexo”, diz, em alemão, esse mestre de cerimônias logo após ter pedido que todos deixassem suas “inibições na porta”. “Entrem num mundo proibido de escândalo, intriga e autoindulgência, e dancem com os belos e os malditos.”

Podia ser 1919, mas é 2019.

No centenário da República de Weimar, a capital alemã está imersa em nostalgia da época que ficou conhecida em livros e filmes por noites libertinas, manifestações artísticas de vanguarda, pelo design da Bauhaus e pela turbulência social que culminaria, dali a pouco, na ascensão do nazismo.

Talvez não por acaso, o Festival de Berlim, que terminou neste sábado, tenha trazido ecos curiosos daquele momento histórico, a começar por sua cerimônia de abertura, carregada de serenatas dos anos 1920, e pelos vários debates que frisaram o temor diante de uma derrocada das democracias.

Um dos longas mais falados dessa edição da mostra de cinema, “The Golden Glove”, do alemão Fatih Akin, começa com a imagem de um serial killer no alto de uma escadaria, cercado por sombras. O que vem à mente é Nosferatu, o vampiro de uma das obras mais emblemáticas do expressionismo alemão, movimento cinematográfico que floresceu naqueles tempos.

“Mr. Jones”, da polonesa Agnieszka Holland, foi outro filme que revisitou o período, evocando o incêndio do Reichstag, estopim para que, em 1933, Hitler concentrasse poderes e pusesse fim à tal efervescência cultural dos berlinenses do entreguerras.

Só que é mais fora do cercadinho do festival que essa nostalgia vigora. Nos últimos dois anos pipocaram  festas temáticas dos anos 1920. Homens vão de gravata borboleta e mulheres, de vestidinho de franja, boá, penteado em estilo charleston e cigarrilha. A mais conhecida é a itinerante Bohème Sauvage, que se expandiu para além da capital alemã e agora tem edições em outras metrópoles, digamos, pangermânicas —Hamburgo, Colônia, Zurique e Viena.

Le Pustra, nome artístico do performer do início deste texto, é um dos maiores chamarizes desse “revival”. Ele apresenta shows concorridos em Berlim, que chegam a custar até € 32, ou R$ 135, e trazem números musicais e esquetes com artistas andróginos da cena noturna da cidade. Seu conceito estético, afirma a este repórter, é inspirado sobretudo no personagem Emcee, de “Cabaret”, filme musical de Bob Fosse ambientado na Alemanha do começo dos anos 1930.

“A cidade nunca perdeu essa liberdade artística. Até hoje, atrai turistas e boêmios que querem cair na noite e se reinventar”, diz o sul-africano de 41 anos que levou sua bagagem teatral para Londres antes de se estabelecer em Berlim, há quatro anos. 

Hoje, nota um “interesse renovado” entre os alemães pelo espírito de Weimar.

Suas apresentações são encerradas com a música “Das Lila Lied”, canção composta nos anos 1920 e tida como o primeiro hino gay da história. Naquele período, a cidade ficou conhecida como um oásis homossexual, imortalizado na obra do escritor britânico Christopher Isherwood. Na década seguinte, gays alemães seriam mandados para campos de concentração.

“Meu objetivo é explorar a liberdade queer e o zeitgeist daqueles curtos anos”, diz o performer, que esboça comparações entre os boêmios de então e os boêmios da era Angela Merkel. “As almas perdidas da República de Weimar celebraram sua breve liberdade indo ao extremo em bares underground e cabarés. Hoje, buscamos uma nova válvula para escapar às nossas vidas ciberneticamente dominadas.”

Depois que seu show, o “Kabarett der Namenlosen”, chamou atenção de revistas de moda e publicações para turistas descolados, Le Pustra foi chamado para atuar na terceira temporada da série “Babylon Berlin”, disponível no Globoplay, outro dos motores dessa nostalgia. No ar na TV desde 2017, o thriller policial acompanha as rondas noturnas de um investigador que se envolve nas intrigas políticas que marcaram a metrópole na virada da década de 1920 para a de 1930.

Especialista na cultura da era Weimar, o historiador Jochen Hung crê que o interesse na época pode ter sido reavivado devido aos efeitos da crise econômica de 2008. “Houve numerosos textos alertando sobre os perigos que se impõem à democracia quando eleitores que sofreram baques financeiros optam por políticos populistas. E aquele foi o exemplo mais vívido disso.”

Na época, os alemães enfrentaram a penúria da hiperinflação e se insurgiram contra as condições do Tratado de Versalhes, firmado pelos países vencedores da Primeira Guerra. O descontentamento difuso ajudou a levar os nazistas ao poder. Hoje, sustentada por um sentimento anti-imigração e escorada num discurso que tem apelo entre camadas que sofreram com os efeitos da crise, a sigla ultranacionalista AfD é a maior bancada de oposição ao governo.

Hung é crítico a visões anacrônicas sobre o período que antecedeu a chegada de Hitler, em particular à versão cristalizada e romantizada de que estavam todos caindo na gandaia enquanto trevas cresciam ao redor deles, isto é, de que bebiam —e dançavam— à beira do abismo. “Essa era só uma pequena porção da vida noturna na cidade. Frequentar clubes atléticos ou de tiro eram atividades mais mundanas do que ir ao cabaré”, diz.

Ele cita o fracasso de público que foi o filme “Metrópolis”, de Fritz Lang, hoje um ícone inquestionável. “Só poucos iam às exposições dadaístas ou estudavam na Bauhaus. Ainda assim, esse fenômeno marginal hoje é visto como a totalidade da vida cultural alemã.”

Le Pustra acha que a nostalgia se explica pela falsa percepção de que eram tempos mais glamourosos aqueles. “E não há nada de errado com isso.”

Colaborou Arthur Cagliari

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