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Cinema joga luz em escritor negro e gay que marchou pelos direitos civis

Indicado ao Oscar, 'Se a Rua Beale Falasse' recupera legado de James Baldwin

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O escritor James Baldwin em retrato feito em 1964
O escritor James Baldwin em retrato feito em 1964 - Jean-Régis Roustan /Roger-Viollet
São Paulo
A rua Beale não dá as caras no romance “Se a Rua Beale Falasse”, de James Baldwin, nem no filme inspirado nele, de Barry Jenkins. O local de Memphis que é indissociável da cultura do blues paira além de qualquer delimitação geográfica. Está lá como uma espécie de via crucis, atemporal e simbólica, da experiência do que é ser negro na América.
 
A obra de Baldwin está embebida da cadência do blues —ora melancólica, ora efusiva, encapsula as chagas do racismo cotidiano e também a sua pulsão de resistência. 

Graças ao documentário “Eu Não Sou Seu Negro”, do ano retrasado e ao drama de Jenkins, que estreia nesta quinta (7), o cinema tem ajudado a recuperar o legado do escritor nova-iorquino. Morto em 1987, ele foi a voz na literatura do grito da luta racial. 


Nos Estados Unidos pós-Black Lives Matter e no Brasil pós-cotas universitárias, seus escritos encontram acolhida especial. Enquanto o longa “Se a Rua Beale Falasse” larga com três indicações ao Oscar, o romance de 1974 que o originou desponta entre “Terra Estranha” e “O Quarto de Giovanni”, livros do autor que estão sendo relançados por aqui.

“Com pegada literária, ele trazia temas que só depois seriam trabalhados nas ciências sociais”, afirma o sociólogo Márcio Macedo, que assina o posfácio da nova edição de “Se a Rua Beale Falasse”. “Ao desconstruir a noção de identidade, Baldwin foi um pós-modernista ‘avant la lettre’.”

Macedo se refere à forma como o escritor americano tornou ainda mais complexo o debate sobre o lugar do negro ao inserir elementos subjetivos como gênero, classe e sexualidade —hoje indissociáveis do debate racial. “Ele foi na contramão do 'essencialismo', de pensar essas questões no lugar-comum do preto e branco”, diz o sociólogo. 

Nascido em 1924, no Harlem, o bairro negro de simbolismo mítico em Manhattan, Baldwin foi pastor mirim, travou contato com a boemia da costa leste e excursionou pelos direitos civis quando os movimentos por eles pipocaram no fim dos anos 1950.

Homossexual, viu-se numa posição sui generis em meio ao contexto das marchas de Martin Luther King e acabou atraindo críticas virulentas de Malcolm X. Próximo de Nina Simone, o escritor é que teria despertado na cantora o engajamento político e ajudado a persuadir Robert Kennedy a apoiar o movimento.

A produção do autor, contudo, não se resume a denunciar as mazelas. Sua proximidade com o pintor Beauford Delaney lapidou um estilo literário rico, cheio de descrições sofisticadas e que era tributário das artes plásticas.
 

O romance “Se a Rua Beale Falasse” reúne esses atributos e embala o que Macedo descreve como “epopeia afro-americana”. Nele, Baldwin tece o a trajetória negra nos Estados Unidos até o começo dos anos 1970.


Com o assassinato, na década anterior, de Martin Luther King e Malcom X, suas duas principais lideranças, o movimento dos direitos civis se encontrava numa berlinda. 

O escritor inclui na obra reflexões sobre os horizontes que se desdobravam então, como a radicalização, materializada na luta dos Panteras Negras, e sobre o papel social das prisões, cada vez mais atulhadas de negros, conforme frisava a ativista Angela Davis.

É a cadeia a grande agrura da trama. Tish e Fonny são jovens namorados que se conheceram ainda pequenos no Harlem. Ao se mudar para o Village, área de maioria branca em plena ebulição da contracultura, o rapaz acaba sendo incriminado por um policial racista, que o acusa do estupro de uma imigrante latina.

Tish, a narradora, está grávida. Por meio das observações da moça sobre o entorno —os abismos da cidade, o papel da religião na comunidade, a rotina das famílias negras—, o escritor trata da desigualdade que perdura mesmo após o fim da a segregação racial. 

É natural que um romances desses tenha chegado às mãos do cineasta Barry Jenkins. Seus filmes anteriores, como o vencedor do Oscar “Moonlight”, mostram preocupação em apreender as várias camadas da vivência dos descendentes de africanos nos EUA.

No longa premiado, ele desconstrói estereótipos da masculinidade, valendo-se do signo do “gangsta”, o estilo que flerta com a marginalidade, embutido em um traficante homossexual criado num bairro depauperado de Miami. 

É um esforço que marca a produção de diretores negros surgidos nas últimas décadas, como Dee Rees (“Pariah”, “Mudbound”) e Rashaad Ernesto Green (“Gun Hill Road”), e que, não por acaso, foram alunos de Spike Lee na Universidade de Nova York. 

No filme de Jenkins, KiKi Layne e Stephan James interpretam o casal central da trama. Regina King, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante pelo papel, faz a mãe de Tish, Sharon, a sogra que assume a função de provar a inocência  de Fonny enquanto a mãe dele sucumbe à religiosidade. 

Após interpretar Tish, Layne foi escalada para “Native Son”, recém-exibido em Sundance, outro longa inspirado na obra de conhecido escritor negro, Richard Wright. A história, que fala sobre um rapaz que comete assassinato após ser acossado pelo racismo estrutural, produziu impacto em James Baldwin. 

Seu livro de ensaios mais famoso, “Notes on a Native Son”, que em breve será publicado no Brasil, faz referência ao romance de Wright, que o autor  chamava de “estereotipado”.

Para “Se a Rua Beale Falasse”, Barry Jenkins trocou o hiper-saturado das ruas banhadas pelo sol da Flórida de “Moonlight” por um registro outonal de Manhattan e suas casas de tijolo, as “brownstones” imortalizadas nas fotografias de Roy DeCarava, apelidado de Cartier-Bresson do Harlem.

Com o bairro cada vez menos negro, fruto da gentrificação que modificou o horizonte da cidade, o diretor disse ter penado para achar rastros da Nova York de Baldwin. Ficou restrito a algumas ruas.

Pouco restava daquilo que ele tinha lido nas páginas do livro: os bares de esquina em que as balconistas eram galanteadas, as janelas de onde as mães gritavam pelos filhos e as barbearias onde as garrafas passavam de mão em mão.

Se a Rua Beale Falasse
James Baldwin. Trad.: Jorio Dauster. Ed. Companhia das Letras. R$ 49,90 (224 págs.)

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