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Livros

É somente no abandono que o poeta Manoel de Barros se realiza

Autor mato-grossense é tema de exposição no Itaú Cultural em São Paulo

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Sérgio Medeiros

Lançado em 1966, o livro "Gramática Expositiva do Chão" de Manoel de Barros (1916-2014) é certamente um dos pontos culminantes da obra do poeta mato-grossense, tema de uma exposição no Itaú Cultural em São Paulo.

Ao falar do artista promíscuo que podia ser tudo e nada, o livro não traça seu retrato, mas revela que sua passagem pelo mundo só deixou resíduos (bobina enferrujada, rolo de barbante, armações de guarda-chuva etc.), os quais, minuciosamente registrados no poema, celebram sua ruína como se ela fosse na verdade uma conquista estética e espiritual. É só no abandono que o poeta se realiza. 

Esse tema é caro a Manoel de Barros, que o transformou numa poética. De fato, pode-se afirmar que sua obra expressa, em verso e prosa, vários modos de abandono, mas sempre exaltando seu lado positivo, transgressor e inventivo. Assim, o abandono está no centro de outro livro importante, "Matéria de Poesia", lançado em 1970, no qual se reafirma que o poema é um monte de resíduos (“Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, ou ainda: “O que é bom para o lixo é bom para a poesia”), e o poeta, uma boca que o mato conquistou (“As coisas jogadas fora / têm grande importância / —como um homem jogado fora”). O livro termina com o poema intitulado “O Abandono”.  

Porém, se tudo parece girar em torno dessa experiência de perda, ela não exclui, em certos momentos, a riqueza da explicação, que tenta reciclar o resíduo que se acumulou no terreno baldio do poema. Ao detrito confere-se, assim, algum papel, ou certa utilidade. “Tudo que explique / o alicate cremoso / e o lodo das estrelas / serve demais da conta”.

A partir desse elogio da explicação, que está no livro "Matéria de Poesia", pode-se concluir que a palavra de Manoel de Barros abandonou muita coisa para poder realizar-se como poesia, menos a explicação, a qual não poucas vezes ameaça diluir o poema, retirando-lhe parte da radicalidade.  

São numerosos os exemplos que se poderia citar desse inesperado e incômodo didatismo. O comentário em geral retira dos versos os achados poéticos e os insere numa prosa insossa, relendo-os sob outra ótica. “Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira dos Andes”, afirma-se em "Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo" (2001), mas, na sequência, vem a inútil explicação: “O pessoal falou: seu olhar é distorcido”. Nesse mesmo livro, num poema que fala de errância, intitulado “Miudezas”, a explicação quer tornar tudo mais compreensível e palatável: “Caminho todas as tardes por estes quarteirões / desertos, é certo. / Mas nunca tenho certeza / Se estou percorrendo o quarteirão deserto / Ou algum deserto em mim”.

Não por acaso, os melhores poemas de Manoel de Barros são os que conseguiram driblar esse tipo de comentário, cuja intenção, ao que parece, é oferecer ao leitor algo mais do que detritos e resíduos.

A poética do abandono sem explicações é, por isso mesmo, a maior contribuição de Manoel de Barros à poesia brasileira.

Sérgio Medeiros é poeta e ensaísta. Publicou, entre outros livros, "A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens" (2017) e "Trio Pagão" (2018), ambos publicados pela editora Iluminuras.

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