Logo depois do desfile de inverno da Gucci, o estilista Alessandro Michele teve de responder a uma jornalista se a marca venderia “aqueles colares com espinhos enormes”. “Não. Acho que nem seria permitido”, brincou o designer, dono de um dos espetáculos visuais mais disputados da semana de moda de Milão.
No Brasil, os colares possivelmente precisariam de autorização especial para serem usados na rua, e eram só detalhe no guarda-roupa mais obscuro já desfilado pela marca, gigante do luxo amada na mesma medida por madames e funkeiros —todos eles fãs dos estudos mirabolantes de Michele sobre a raça humana.
É quase consensual na indústria que ele não cria pensando em pessoas, mas em seres, humanos ou não, com sentimentos que podem ir da paixão à loucura numa mesma passarela, como foi a desta quarta-feira (20).
As máscaras que cada um veste para mentir, dissimular ou se proteger serviram de norte para uma reconhecível mistura de fantasia e roupa urbana, criada por ele e copiada mundo afora.
Quando soaram rugidos animalescos, o telão com 120 mil lâmpadas de LED emitiu clarões que lembraram bombas lançadas no meio da passarela de cem metros, espelhada assim como o chão e as paredes.
Um a um, os modelos desfilavam várias máscaras: a do escritório, com uma alfaiataria tão volumosa e pomposa quanto o ego dos profissionais que as vestem; a da garota patricinha, tão rococó quanto seus hábitos esnobes; e a das ricas quatrocentonas, felpudas e ultrapassadas como seus casacos puídos.
Nerds, esportistas, almofadinhas e recatadas transitavam pelo mesmo baile de máscaras, alguns com espelhos na mão para representar o narcisismo humano. O ponto em comum é que todos eles pareciam usar seus looks como armaduras.
Como se afastassem o olhar alheio, usavam cintos, gargantilhas e colares com os tais espinhos, afastando qualquer um que chegar perto. “Tenha cuidado, não se aproxime”, traduziu Michele após a apresentação, embalada por música sacra. Itens católicos, de cruzes a hábitos de freira reconstruídos, conversavam com as roupas de festas indianas, cheias de brilho e enroladas pelo corpo.
Joias douradas tapavam ouvidos, bocas e olhos numa representação da teimosia, essa sim, bem humana, de não ouvir, falar e enxergar os próprios defeitos.
Assim como fez na coleção do inverno passado —a mesma que produziu uma balaclava polêmica similar a uma blackface—, Michele se inspirou em textos de filósofos para criar a coleção que, apesar de extremamente estereotipada, não carrega nenhum tipo de julgamento moral.
A alemã Hannah Arendt embasou as criações, que mostram e revelam sentimentos, lançando mão da tese da filósofa de que máscaras definem o indivíduo politicamente.
Na passarela, esse alguém precisa enfrentar um campo minado, um mundo em frangalhos representado pelas imagens de chamas corroendo o espaço.
É a metáfora de Michele para o autoritarismo e a ilusão de um mundo perfeito —tema de sua última coleção, desfilada em Paris— onde ninguém precisa usar máscaras para se defender.
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