Há um bocado de “Cidade de Deus” na proposta do italiano “La Paranza dei Bambini". A afirmação pode parecer bastante reducionista, mas é difícil não pensar na obra de Fernando Meirelles e Kátia Lund ao assistir a esse longa sobre delinquência juvenil na cidade de Nápoles, que compete no Festival de Berlim.
Claro que, dado o contexto, saem de cena todos os códigos que regem a violência nas comunidades cariocas para dar lugar aos ritos próprios da máfia, mais especificamente os das gangues de rua que atuam sob o guarda-chuva da organização criminosa Camorra. Nos dois casos, contudo, há uma investigação sobre como a cultura da criminalidade forja a identidade masculina.
Aqui, o diretor romano Claudio Giovannesi parte de um romance do jornalista Roberto Saviano, que se notabilizou por suas reportagens investigativas sobre as intrincadas engrenagens que sustentam a Camorra, entre elas o livro que deu origem ao filme “Gomorra”, de Matteo Garrone. Hoje, o autor vive sob escolta policial.
“Paranza” é um termo dialetal da região da Campânia que pode se aplicar a barcos pesqueiros, grupos musicais folclóricos ou embarcações que transportam o contrabando da máfia. Em inglês, o filme ganhou o título de “Piranhas”, o que dá conta dos personagens do filme: um grupo de adolescentes que querem se firmar por meio da contravenção pesada.
Nicola (Francesco di Napoli) é o macho-alfa do grupo. Tem 15 anos e é filho da dona de uma lavanderia. Apesar de certo apego a roupas de grife, o que o impele na trama é certo sentimento de honra. Ele não atura mais ter que ver a mãe, assim como todos os comerciantes das redondezas, pagar propina aos gângsteres do bairro.
Junto dos outros cinco garotos que zanzam com suas motos pelas estreitas ruas napolitanas, ele enfrenta a liderança para se tornar o maioral local. Mas, como logo será advertido, esse é um jogo com cartas marcadas, e as credenciais de Nicola não o tornam apto a ser um líder longevo.
Autor do romance que originou o filme, Saviano viajou a Berlim e comentou sobre como é viver em permanente estado de apreensão. Crítico virulento de Matteo Salvini, ministro do Interior e maior nome da direita na Itália, o autor quase se viu sem poder mais contar com a escolta após o político ameaçar suspendê-la.
No ano passado, Salvini disse que era hora de a “Itália rever a forma como gasta dinheiro” e disse estar farto de fazerem associação entre seu nome e a máfia, “uma merda que combato com todas as minhas forças”, segundo escreveu numa rede social. Acabou não cortando a proteção com a qual Saviano conta desde 2006.
“Ela não é um privilégio, é um drama”, disse o jornalista na capital alemã, mencionando a morte de colegas na Itália e afirmando que “não há terreno seguro” para se escrever sobre a Europa. Ele sempre foi um enfático opositor às políticas consideradas xenófobas empreendidas por Salvini.
Outro título que compete ao Urso de Ouro, o alemão “I Was at Home, But” é o oposto do italiano “La Paranza dei Bambini”: é gélido, elíptico e rigoroso em sua forma –resumo ilustrativo da chamada Escola de Berlim que marca o cinema alemão contemporâneo. Não por acaso, a sua diretora, Angela Schalanec, é uma das expoentes desse gênero estético.
Como tal, é difícil encontrar um fio narrativo muito claro nessa história, mais construída pelo que ela omite do que pelo que ela exibe. A obra é contada por meio de cenas esparsas, pequenos trechos que não parecem se comunicar.
Há uma mulher de meia-idade dada a arroubos de ira. Ela tem ataques histéricos com os filhos, se enfurece com o sujeito que a vendeu uma bicicleta aparentemente com defeito. E há o seu primogênito, que fugiu da escola e contraiu algum tipo de infecção. E há uma mal-ajambrada colcha de retalhos que misturam diálogos e cenas meio absurdas, como a de animais no campo --incluindo um burrinho de olhar humano que contempla a vista da janela.
“I Was at Home, But” é daqueles filmes que ficam na fronteira, sempre muito incerta, entre o que é reflexão erudita e o que é puro charlatanismo cinematográfico.
O jornalista se hospeda a convite do festival
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