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Governo Bolsonaro

Masturbação em obra de Di Cavalcanti atrás de Bolsonaro é fantasiosa

Tapeçaria, que fica no gabinete do presidente, teve suposto teor sexual compartilhado na internet

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Denise Mattar

​Os comentários que circularam nas redes sociais sobre a tapeçaria de Di Cavalcanti que decora o gabinete do presidente, no Palácio da Alvorada, afirmando que mulher ao centro do painel está se masturbando, divulgam uma ideia bastante fantasiosa e inteiramente fora das características das obras monumentais do artista no período, muito mais voltadas para uma exaltação do Brasil moderno que estava nascendo, mas ao mesmo tempo evocando uma certa nostalgia do passado.

A cidade de Brasília surgiu dentro de um contexto de pós-guerra no qual arquitetos e artistas acreditavam que poderiam ser os artífices de uma mudança do homem. Em vários países houve a criação de quarteirões e bairros integrando arte, arquitetura e urbanismo. O Brasil foi o único país a realizar uma cidade inteira, e Brasília é um dos poucos exemplos arquitetônicos da utopia modernista que resiste até hoje, um exemplo da síntese das artes.

Na construção da cidade as obras de arte foram encomendadas a alguns dos mais importantes artistas do primeiro e segundo modernismos, entre eles, Bruno Giorgi, Maria Martins, Volpi, Ceschiatti, Athos Bulcão e Di Cavalcanti.

O presidente Jair Bolsonaro, ao lado de ministros como Onyx Lorenzoni e Paulo Guedes e outros membros do governo após discutir o projeto de Reforma da Previdência, em Brasília. A foto foi publicada pelo deputado Major Vitor Hugo, líder do governo - Reprodução/Twitter

Não foi criada uma comissão e nem definidos critérios de seleção, sendo os artistas escolhidos basicamente por Oscar Niemeyer. Os trabalhos eram encomendados para ocupar determinados espaços na arquitetura, mas os artistas tinham inteira liberdade para criar. Di Cavalcanti recebeu como encomendas "A Via Crucis na Catedral", um grande painel para o Congresso, e duas tapeçarias para o Palácio da Alvorada, sendo uma delas para o gabinete do presidente.

No período das décadas de 1950 e 1960, o artista realizou muitas obras monumentais por todo o Brasil. A nova arquitetura de linhas simples e arrojadas, de grandes proporções, exigia um padrão artístico que encarnasse o sonho da modernidade. Entendendo essa demanda, ele imprimiu ritmo, velocidade e cor às suas obras, sem abandonar a sensualidade que sempre marcou seu trabalho.

No muralismo de Di Cavalcanti, há o predomínio de figuras estilizadas, de formas curvas, e da repetição de elementos sinuosos, que ajudam a dominar o espaço. Curiosamente, o artista das cores fortes realizou o painel do Congresso e a tapeçaria do gabinete usando apenas o azul, o preto, o branco e o cinza.

Di Cavalcanti realizou os cartões para as tapeçarias do gabinete da Presidência em tamanho natural. Pintou em Paris durante o ano de 1958 e, a seguir, as peças foram tecidas no ateliê Aubusson. O trabalho é uma homenagem à música brasileira, mostrando um grupo tocando instrumentos típicos do samba de raiz e do chorinho: flauta, violão e cavaquinho. As sinuosidades se espalham por todo o trabalho, aludindo às ondas sonoras. Ao centro, um homem deitado e uma mulher gorda e escarrapachada apreciam o som.

Pertencendo ao mundo do realismo mágico, a obra transita por opostos que ele faz conviver: o lirismo e a sensualidade, o real e o fantástico, o cotidiano e o extraordinário, o compromisso social e o hedonismo, a razão e a emoção. Mais do que qualquer outro artista, ele conseguiu exprimir em suas telas o lirismo do povo brasileiro e nossa sensibilidade sensual e sentimental.

Mas se a sensualidade é uma marca de Di Cavalcanti, ela pouco se aplica especificamente a essa obra, antes uma celebração da pureza e da simplicidade de um grupo de amigos, imerso na doce, e geralmente triste, melodia de um chorinho.

 

Denise Mattar é crítica de arte e curadora responsável por mostras de Di Cavalcanti

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