Menos sexy, Milão interpreta conservadorismo com passarela opaca

Cartela de cores fez par com versões de uma alfaiataria que remete à dos anos 1930 e 1940

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Desfile da Dolce & Gabbana na semana de moda de Milão - Marco Bertorello/AFP
Milão

Imersa numa escalada conservadora semelhante à brasileira desde a ascensão ao poder do partido Liga e de seu líder, o ministro Matteo Salvini, a Itália está menos sexy.

Já era esperada uma passarela fria nesta semana de moda de Milão, que acabou no domingo (24), afinal, é a edição inverno 2020 do circuito europeu de desfiles. Mas não que a temporada se resumisse a lã, seda e cashmere cortados em tom militarista.

Passeando pelos verdes musgo, oliva e lavado, pelos tons terrosos e pelo luto do preto, as grifes italianas cobriram a pele com casacos pesados de perfil utilitário, desses cheios de bolsos e zíperes para guardar tralhas colhidas durante o dia.

A cartela de cores opaca fez par com versões de uma alfaiataria que remete à dos anos 1930 e 1940, volumosa, cinza e combinada a acessórios igualmente grosseiros, brutos, e ainda assim belos, como os cintos e as bolsas da Bottega Veneta nas quais se via esculturas similares a balas.

Ponto em comum a quase todas as coleções, a palavra liberdade foi usada como uma espécie de uma sacada de ironia no momento de ebulição social no qual vozes divergentes não chegam a um consenso. Esse contraste era exposto com um jogo inteligente de pesos.

Na Salvatore Ferragamo, uma das mais importantes do segmento coureiro da Itália, as roupas libertavam o movimento, com fendas abertas na barra dos casacos e nas peças com cintura ajustável.

As formas rígidas da alfaiataria contrastavam com a base de couro das peças, tingidas com as cores terrosas desta estação e construídas com um patchwork de texturas. Novo diretor criativo da grife, o britânico Paul Andrew incorporou o xadrez escocês ao portfólio clássico da marca, reconhecida pelos acessórios arquitetônicos.

Tudo parece extremamente leve, uma sensação de fluidez proporcionada pelo uso da seda tingida com estampas coloridas que formam saias envelopadas e camisas, mas também vem coberto por abrigos pesados de cores sóbrias.

Esse apelo para as linhas geométricas também conduziu o inverno de Giorgio Armani, instituição da moda italiana que nesta temporada reduziu seu desfile a uma série de looks de corte assimétrico em preto e tons de marinho.

As famosas jaquetas na altura da cintura, popularizadas por ele, apareceram texturizadas, com detalhes metalizados e com o brilho do veludo molhado. Golas do tipo das usadas em quimonos, babados e calças de montaria conferiram um glamour etéreo à coleção matemática de Armani, um estilo conservador na forma, mas de conteúdo luxuoso.

Embora as roupas dessa temporada milanesa transmitam a ideia de reedição de décadas passadas, há um verniz novidadeiro na forma com a qual os looks são apresentados na passarela.

A Tod's mostrou um styling bem conduzido ao arrematar seus conjuntos, opulentos e muitas vezes cortados como armaduras, com duplas de bolsas de diferentes tamanhos.

Também havia pequenas frasqueiras combinadas a microbolsas, modelos a tiracolo com acessórios de mão —ideias modernas em meio ao rigor estético da coleção.

Nenhuma marca, porém, embalou os contrastes de uma época de extremos como a Gucci. Muitas vezes difícil de assimilar dada a confusão de referências que um único look pode apresentar, a marca segue apostando no périplo do estilista Alessandro Michele em traduzir o comportamento da juventude em dias belicosos.

Os acessórios brutos, usados como armas, traduzem o tom armamentista das relações políticas e, ao mesmo tempo, denotam o espírito de proteção visto desde as passarelas de Londres.

Michele construiu looks com grossas camadas de tapeçaria, couro, patchworks, seda e cashmere para criar personagens surdos, mudos ou cegos de um olho —efeitos possibilitados pelos acessórios dourados que cobriam orelhas, bocas e olhos.

Suas roupas emulam as máscaras que cada um constrói para repelir o outro e estabelecer uma visão de mundo particular e individualista, sem escutar ou ver o que está na frente.

A julgar pelos desfiles desta temporada de inverno 2020, o futuro nas vitrines será um conto tão sombrio quanto o roteiro de romance tóxico criado pela Prada em seu desfile.

Serão prateleiras preenchidas por tons aguados, roupas pesadas e quase nenhuma fresta de pele aparente para tocar. É como se, agora, toda nudez pudesse ser mal interpretada.

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