Num de seus mais recentes esquetes, o humorista Seth Meyers ironiza os clichês de filmes que condenam o racismo, mas tornam os personagens brancos redentores dos negros, esses sempre retratados como passivos na luta por igualdade. Numa certa hora, enumera 16 exemplos da lavra: “Histórias Cruzadas”, “Estrelas Além do Tempo”, “Um Sonho Possível”…
E “Green Book”. O fato de o Oscar de melhor filme ter caído no colo desse último, na noite de domingo (24), escancara a visão um tanto tortuosa que a Academia mantém a respeito dos chamados movimentos identitários. Na superfície, um afago; no fundo, uma absoluta incompreensão.
Não à toa, Spike Lee, uma das mais conhecidas vozes negras no cinema, deu as costas ao palco quando a equipe ganhadora foi receber o prêmio.
“Sempre que alguém dirige, eu perco”, brincou o cineasta nos bastidores, fazendo referência a "Conduzindo Miss Daisy”, de 1989, outra obra premiada e com o mesmo tipo de abordagem conciliatória e enviesada sobre o racismo —e, tal qual o filme vencedor, dirigida por cineasta branco.
"Green Book" padece de boa parte das críticas apontadas por Meyers. Retrata o preconceito como um mal oriundo apenas de brucutus ignorantes, transforma o personagem branco no salvador do negro e lança uma mensagem carregada de platitudes sobre a convivência entre comunidades.
A história, baseada num caso real, narra a amizade entre um jazzista negro (vivido pelo ganhador do Oscar de ator coadjuvante Mahershala Ali) e seu chofer ítalo-americano (Viggo Mortensen), enquanto ambos viajam pelo Sul americano da época da segregação.
Trata-se de retrato “cheio de mentiras”, segundo Maurice Shirley, irmão mais novo do personagem interpretado por Ali. Ele contesta a forma como o diretor Peter Farrelly e os roteiristas, todos brancos, pintam o músico, como se ele fosse apartado das raízes da cultura afro-americana e só se reconectasse a elas graças ao motorista, branco.
O tom pacificador da obra é a antítese do preterido filme de Spike Lee, “Infiltrado na Klan”, que não titubeia em traçar ligações entre o presidente Donald Trump e a organização racista Ku Klux Klan.
Tendo que se contentar com a estatueta de melhor roteiro adaptado, o cineasta aproveitou o palco para dizer que estava “do lado certo da história” e dizer que as eleições de 2020 já “estão aí na esquina”.
Trump respondeu horas depois, no Twitter, e disse que o comentário do diretor foi racista e que, como presidente, ele havia feito mais pelos negros do que quase todos os outros mandatários anteriores.
Ao premiar “Green Book” em detrimento de longas mais incisivos sobre a questão racial, como “Infiltrado na Klan” e a fantasia afrofuturista “Pantera Negra”, a Academia disparou um recado paradoxal.
Posou com certo bom-mocismo para se descolar das críticas que, em anos anteriores, originaram a hashtag #OscarsSoWhite, que contestavam a proeminência de branca entre atores indicados. Mas enveredou pela visão mais distante dos acalorados debates sobre o papel do negro na atual sociedade americana.
É quase como se quisessem dizer: “Não somos racistas, valorizamos obras que abordem o assunto, mas desde que elas não balancem o status quo.”
A vitória do filme de Peter Farrelly dispara outro recado por parte da entidade cinematográfica. De alguma forma, significou um freio à voracidade da Netflix, que quer se impor como uma das forças que dão as cartas em Hollywood.
É certo que o mexicano “Roma”, de Alfonso Cuarón, empatou em vitórias com “Green Book” e saiu com três estatuetas prestigiosas: direção, filme estrangeiro e fotografia.
Ainda assim, a empresa de streaming perdeu o grande prêmio da noite. A mensagem parece clara, isto é, a Academia concede reconhecimento à empreitada visual de Cuarón, mas acha cedo ainda se abrir para a Netflix, que se impõe como ameaça ao circuito tradicional de salas de cinema.
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