Paredões dominam bailes de São Paulo com luzes e sons de dilacerar os tímpanos

Antes típicas das aparelhagens do Pará, caixas de som têm metros de altura e nomes como Megatron

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Paredão de som em baile funk

Paredão de som em baile funk Gabriel Cabral/Folhapress

São Paulo

“Senhoras e senhores, a putaria vai começar.” 

O anúncio feito pelo MC é a chave para que as batidas de funk comecem e façam vibrar os corpos na festa. É cerca de uma hora da manhã, e o baile em Caçapava, no interior paulista, está só embrasando —ou esquentando, se você é um estrangeiro nesse universo distante 112 km da capital.

A vibração, porém, ainda não é aquela do estereótipo, com meninas de jeans colado sarrando rapazes de boné e óculos escuros mesmo de madrugada. Nas primeiras horas do baile, a tremedeira é outra, produzida pela estrela da noite: o Megatron.

O gigantesco paredão tem quase quatro metros de altura e três de largura e é formado por um amontoado de cerca de 110 caixas de som, entre subs (frequências graves), cornetas (médias) e tuítas (agudas). Todas são iluminadas por luzes de LED piscantes, variando do amarelo-ovo ao rosa-choque, do azul-marinho ao verde-água, dependendo da batida da música. 

O resultado é um clima entre o baile e o clássico inferninho dos anos 1980, mas com volume agressivamente alto, capaz de gerar ondas que balançam as roupas.

A força é tanta que quem não está acostumado —ou não bebeu muito a ponto de se anestesiar— precisa recuar umas dezenas de metros para evitar a sensação de ter os tímpanos dilacerados.

O Megatron é reflexo e evolução de uma cena que existe há ao menos cinco anos e vem ganhando força em São Paulo: a dos paredões.

Eles se espalham por festas da capital e da região metropolitana, sobretudo bailes funk —sejam eles os organizados em espaços fechados ou os fluxos, festas de rua organizadas sem autorização que fecham vias e não raro geram conflitos com vizinhos e polícia.

Mas essa tendência começa a extrapolar a bolha dos bailes de periferia. 

O Megatron foi contratado no ano passado para um comercial conjunto de Habib’s e iFood, em que as empresas fazem uma versão gastronômica de “Só Quer Vrau” (MC MM), variante funk da canção popular italiana “Bella Ciao”, que ali vira “e tem bolinho/ de bacalhau, bacalhau, bacalhau-lhau-lhau”. 

A festa em Caçapava ocorre dentro de um sítio, ao ar livre. Como é comum aos bailes, todos são revistados à entrada, mas ninguém pede documentos —isso explica os rostos claramente ainda às voltas com as espinhas da adolescência. 

Até a meia-noite, todos estão liberados para entrar com a sua própria bebida, o que faz o encontro parecer um piquenique etílico cheio de adolescentes dançando em volta de coolers e isopores repletos dos itens que trouxeram de casa. 

O combo vodca com energético predomina, defumado por tragadas quase ininterruptas em narguilés e cigarros de maconha, além de um lança-perfume aqui ou ali.

Isso em nada destoa, vale ressaltar, do que se vê nas festas na região central da capital paulista.

Antes das duas da manhã, garotos de bermudão, camiseta polo e boné —com variações como tênis esportivo colorido e meia vestida sobre a calça— já compram garrafas de uísque Jack Daniels a R$ 170 ou de vodca Smirnoff a R$ 60. 

A bebida não é vendida em doses, e cada garrafa vem com um sinalizador que solta faíscas e faz todos ostentarem selfies, como manda o figurino de qualquer festa atual, na periferia ou na zona oeste.

Enquanto isso, meninas se enfileiram em frente ao paredão —algumas mais corajosas chegam a escalar o monstrão, que chama só as solteiras lá pra cima.

À contraluz, é possível ver seus corpos contornados pelo neon. À medida que se curvam, beliscam o chão.

Nas letras, a misoginia berra: “pau na boceta”, “abre as perna e toba”, “sexo grupal” e “aê, piranha, de pau duro eu não vou dormir” são algumas amostras líricas. Ouça abaixo uma playlist do Megatron:

Mas esse clima não se repete na pista. No começo, rapazes e garotas bebericam com “parças” e eles assistem a elas rebolarem ou as cumprimentam com toques de mão.

Quando a coisa esquenta, o relógio bate três da manhã. Mas o contato segue comportado, e as abordagens são bem menos ostensivas do que em qualquer festa na rua Augusta ou na casa sertaneja Villa Mix.

Na festa do Megatron, chama a atenção o cancioneiro próprio e proibidão —à diferença de outros paredões, que tocam hits do funk mais pop, como “Parado no Bailão”, mesclados a sertanejo e forró.

Ali, o que ressoa é uma espécie de manual de instruções do baile: o que ouvir (funk proibidão), o que beber (vodca com energético), o que fumar (narguilé e maconha), como dançar (bumbum até o chão).

Com isso, surge um ambiente que se retroalimenta. A música fala da festa que toca a música que fala da festa.

De certa maneira, é uma atualização do conceito de cena que poucos lograram alcançar; é possível citar os Rolling Stones captando a “swinging London” dos anos 1960 ou os Racionais MCs versando a periferia paulistana dos anos 1990.

O empilhamento de caixas de som que define os paredões começou a se popularizar nas festas de aparelhagem do Pará ainda nos anos 1980, tocando merengue e, depois, brega.

O DJ e pesquisador musical Júnior Almeida conta que os equipamentos ganharam vários metros de altura para que a música pudesse ser ouvida de longe pelos que moravam em ilhas ou furos —como são chamados os afluentes e rios menores na região.

“Como o brega e o merengue têm o grave acentuado, a aparelhagem acabou priorizando os subs. É por isso que ela se deu bem com o funk. A batida da música é eletrônica, com um grave prolongado.”

Os equipamentos se espalharam também pelo Nordeste, sendo figurinha carimbada nas festas de arrocha ou de pagodão.

Já em São Paulo, agigantaram-se no embalo da cultura do som automotivo. São versões vitaminadas do carro que para no posto e escancara uma música com o porta-malas aberto. Não por acaso, os principais fabricantes de paredões são lojas de som de automóvel.

Inclusive o Megatron, da Club da 3 Sound, porta de garagem em Guarulhos à beira da rodovia Presidente Dutra.

A loja é tocada por Helber Dias e por seus irmãos há cerca de 15 anos. Foi o pai deles quem montou pela primeira vez um som potente em um Gol. O que nasceu com um carro popular hoje é um negócio transportado de caminhão.

Procurada desde dezembro, a equipe do Megatron não quis dar entrevista.

Na internet, páginas vendem paredões por até R$ 100 mil, mas há equipamentos avaliados em até R$ 1 milhão. Segundo fabricantes, um modelo médio pode ser construído por cerca de R$ 70 mil. 

O investimento é compensado pelos valores cobrados pelo aluguel em festas nas quais o paredão pode ficar tocando por mais de seis horas. O cachê varia de R$ 700 a R$ 1.500, dependendo do evento e da potência das caixas.

“Não dá para viver só disso, então todo mundo também mantém a sua loja”, diz Cleyton José dos Santos, à frente da Sound Pancadão. Com o paredão e a carreta Bumblebee, ele faz aproximadamente quatro apresentações por semana.

Além deles, compõem a cena paredões como Terrorista, 13 Loko, Gigante de Aço, Patrão, Alto Nível e Iceberg.

Geralmente, todos têm capacidade para emitir sons que ultrapassam os 120 decibéis —a Organização Mundial da Saúde indica que 55 decibéis são suficientes para gerar estresse leve, enquanto 75 decibéis por oito horas diárias podem causar perda de audição.

Mas o perigo não abala a ascensão do paredão. “No Pará, as aparelhagens deixaram a periferia para chegar à classe A. E isso vai acontecer aí”, prevê Júnior, o pesquisador.

Santos, o dono da loja, concorda. Em bailes, ele diz, já não é o funk proibidão que faz a cabeça das pessoas, mas a versão mais pop e light que será ouvida neste Carnaval, por exemplo. “Até festa de casamento já fiz. Fica mais barato. Em vez de contratar banda, som e luz, os noivos alugam só o paredão e podem escolher a playlist que quiser.”

Em Caçapava também não parece haver preocupação com compromisso ou decibéis. Quando deixamos o baile, meninas saracoteavam “o rabetão” ao som de “poc poc no teu grelo”, todos tomavam mais uma dose e carros ainda estacionavam.

A noite está só embrasando.

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