'Vamos enfrentar muita merda no Brasil', diz Wagner Moura sobre 'Marighella'

Discurso do filme toma partido e oferece sinais para quem quiser ver nele uma resposta da esquerda ao conservadorismo no Brasil

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Berlim

Gritos de "Lula Livre", "Ele, Não" e "Marielle P resente" abriram a sessão oficial do filme "Marighella", no Festival de Berlim. 

Os berros vieram principalmente de um grupo de cerca de 30 brasileiros que compraram ingresso e se enfileiraram à beira do tapete vermelho do Berlinale Palast, o cinema onde ocorrem as principais projeções da mostra alemã.

Parte da equipe do filme também respondeu aos gritos. O diretor, Wagner Moura, empunhou uma placa com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco e foi ovacionado. 
 
Na primeira vez que Moura deu as caras no Festival de Berlim, em 2007, foi vestido com a farda preta do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite”, o policial que enfrentava o crime passando por cima da lei. Ao voltar, 12 anos depois, como diretor de “Marighella”, o ator quer se firmar como um anti-Capitão Nascimento.

O retrato que faz do guerrilheiro de esquerda é o de um herói amoroso, que pega em armas, mas também prega o respeito às mulheres, que assalta um trem e é elogiado por Jean-Paul Sartre, que assalta banco e é comparado a Lampião, Antônio Conselheiro e Zumbi dos Palmares, outros ícones da rebeldia.

Mas há espaço para alguma nuance, sobretudo quando o personagem é confrontado por recrutar jovens tão incautos, filhos da burguesia, para a luta armada. Mas, como um todo, o discurso do filme toma, sim, partido e oferece sinais a rodo para quem quiser ver nele uma resposta da esquerda ao conservadorismo que ascendeu no Brasil.

A crítica internacional teceu alguns elogios, mas tendeu a sentir falta de mais profundidade e menos maniqueísmo.

Para a Hollywood Reporter, a obra é branda ao abordar a complexidade moral e política do assunto de que trata. "Moura apresenta as ações [dos guerrilheiros] em termos heroicos e acríticos", aponta. A publicação também ralhou o retrato dos personagens americanos no filme, "todos apresentados como se fossem líderes de torcida maquiavélicas das políticas de morte e tortura do regime".

A Screen destaca que o filme às vezes descreve o protagonista como uma "figura totêmica e maior do que a vida" e que acoberta a responsabilidade dele ao sugerir que eram os mais jovens os verdadeiros perpetradores da violência. "É mais uma cinebiografia de ação do que um debate político."

Wagner Moura diz que seu longa surge numa era de “disputas de narrativas” e de revisionismo histórico partindo do próprio governo sobre o que foi o período militar. “No filme, Marighella bota bomba, mata americano, faz um monte de coisa. Mas se me perguntar, eu digo que me identifico com os revolucionários”, afirma o diretor a este repórter.
 
Um dos exemplos mais ilustrativos de como Moura quer que seu filme funcione como cabo de guerra dessas narrativas é a forma como frisa um discurso patriótico na boca dos guerrilheiros.

Indagado se é leninista, trotskista ou maoísta, o protagonista diz que é brasileiro. Seus seguidores bradam que lutam pelo país e até cantam o hino, emocionados. O diretor querer tirar das turmas que marcharam com camisetas da seleção e bateram panela o monopólio de um sentimento ufanista.
 
A produção de R$ 10 milhões acompanha os últimos cinco anos de vida do biografado, começando com o tradicional texto de abertura que situa os reflexos do golpe de 1964. Não há construção de amadurecimento político do personagem aqui.

Quando o encontramos, na pele de Seu Jorge, ele já é consciente das arbitrariedades que vêm com aqueles tanques que desfilam na rua. Sem hesitar, já tomou a decisão de partir para a clandestinidade. Afinal, diz o personagem, “as coisas não vão acalmar”.

 

Só precisa antes dizer um "até logo" ao filho, o garoto Carlinhos, mostrado em momentos idílicos boiando no mar junto ao pai. A relação entre os dois, aliás, é uma das duas janelas que o diretor permite mostrar de vida íntima do protagonista, interpretado por Seu Jorge. A outra é seu envolvimento amoroso com Clara Charf, vivida por Adriana Esteves.
 
Em termos estéticos, sobretudo nas várias cenas de ação, Moura parece tributário do estilo frenético de José Padilha, seu diretor em “Tropa de Elite”, com a câmera balançando colada no ombro de um personagem. O melhor exemplo é o primeiro trecho, um plano-sequência filmado dentro de um —o episódio é o assalto ao trem pagador que fazia a rota entre Santos e Jundiaí, em 1968.
 
Com poucas licenças poéticas, a trama consegue ser fiel à biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães. Reconstrói o episódio em que o protagonista foi baleado numa sala de cinema, a tomada de uma rádio para leitura de um discurso da ALN (Ação Libertadora Nacional), a explosão do consulado americano em São Paulo e até o uso de peruca por Marighella, que era motivo de troça entre seus companheiros.
 
Moura segue os passos de Magalhães até ao reproduzir a execução do guerrilheiro, em 1969. Foi o autor da biografia quem descobriu que o revolucionário estava desarmado quando assassinado pela polícia.

Na época, o inquérito forjou que havia uma arma em suas mãos, e isso é seguido à risca no filme, com os policiais saindo em busca de um revólver para plantar na cena.
 
Mas o filme também adota algumas liberdades dramáticas. Os demais guerrilheiros e os policiais são amálgamas de vários sujeitos. Bruno Gagliasso interpreta Lúcio, um delegado sanguinolento que é clara referência a Sérgio Paranhos Fleury, que comandou torturas e a operação de execução de Marighella. E a trupe de revolucionários é batizada com os nomes dos próprios atores que os interpretam. “Porque eles queriam assumir o discurso dos respectivos personagens”, diz Moura.
 
Numa das cenas, o protagonista arrisca a própria vida para rever o filho, Carlinhos, que morava com a mãe, em Salvador. Ele de fato tentou reencontrar o garoto. Mas a emboscada policial que se segue na trama, com direito ao menino gritando para que o pai não se aproximasse e fosse pego, é um recurso dramático.
 
Entre os outros eventos históricos narrados há a reconstituição da morte do oficial americano Charles Chandler sob ação dos guerrilheiros, que o acusavam de ter ensinado táticas de tortura aos brasileiros.

São vários, aliás, os momentos em que o filme frisa o apoio que o governo dos Estados Unidos teria dado à implantação do governo militar, inclusive em seus atos mais subterrâneos.
 
“Marighella” ainda não tem previsão de estreia no Brasil. Em conversa com os jornalistas na capital alemã, a produtora Andrea Barata Ribeiro afirmou ter ouvido de responsáveis pela distribuição do título, que “o momento não é adequado”. “Mas a gente acha que é totalmente adequado. E se necessário, faremos um lançamento independente”, disse.
 
Procurado pela Folha, o dono da distribuidora Paris Filmes, Márcio Fraccaroli, descartou que o temor político explique essa indefinição.

Segundo disse, via assessoria, o calendário de lançamentos “por ora está muito competitivo”. “Tal qual diversos outros filmes ainda sem data de estreia definida, decidiremos o melhor momento”.
 
Moura crê que vá “enfrentar muita merda” quando voltar ao Brasil, disse, citando a polarização política.

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