Adaptação de Agatha Christie faz paralelo entre períodos de ascensão da direita

Série revela Inglaterra 'doente e xenofóbica' dos anos 1930 em espelhamento com a atualidade

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John Malkovich e Alex Gabassi nos bastidores da série "The ABC Murder"
John Malkovich e Alex Gabassi nos bastidores da série "The ABC Murder" - Divulgação
São Paulo

Um detalhe na adaptação de "Os Crimes ABC' (“ABC Murders”) para a TV, exibido no ano passado pela BBC One, não passou despercebido de jornais britânicos e dos fãs da escritora inglesa Agatha Christie.

O detetive Hercules Poirot,  personagem que se repete em diversos livros da autora e nesta produção interpretado por John Malkovich, não exibia uma de suas características mais conhecidas, o bigode de extremidades pontudas.

“A ideia de reduzir um personagem a um atributo físico é muito chato”, diz Alex Gabassi, diretor brasileiro que conduziu a produção inglesa, que no Brasil é exibida pela GloboPlay.

Essa não foi a única liberdade que a roteirista Sarah Phelps e ele tomaram na criação desta nova leitura para a história de um assassino e suas vítimas cujos nomes seguem ordem alfabética. 

Phelps deslocou a trama temporalmente, de 1936 para 1933, ano em que Hitler, já líder do partido nazista, é nomeado chanceler na Alemanha e em que, no Reino Unido, e o fascismo também ganha expressão. Gabassi conta que esse deslocamento foi feito para espelhar o contexto político atual.

Ele cita o Brexit, as manifestações de xenofobia na Europa e a atuação de políticos que considera de extrema-direita.

​Gabassi diz que o roteiro também coloca Poirot “de maneira mais vulnerável”, próximo ao fim de sua carreira e já desprovido do prestígio que tinha nas instituições policiais anteriormente.

De origem Belga, ele aparece pela primeira vez com um sotaque pouco carregado, o que é explicado como estratégia para não destoar como estrangeiro em uma sociedade xenofóbica. 

Já familiarizada com o universo de Agatha Christie —ela também roteirizou uma adaptação para o livro “E Não Sobrou Nenhum (O Caso dos Dez Negrinhos)”— Phelps procura imprimir às histórias da escritora uma atmosfera menos glamourosa, febril, ou, nas palavras de Gabassi, “mais suja”.

“A gente tem uma visão nostálgica dos anos 1930, do art déco, do art nouveau, uma imagem que não é necessariamente histórica e real”, diz Gabassi. Ele reveste as cidades inglesas onde a história se passa com uma decadência mais aparente, procurando dar contornos psicológicos mais densos aos personagens nesse ambiente.

Os trens são elementos “metafóricos” da trama, diz o diretor, eles conectam as diferentes cidades onde os crimes acontecem, mas também passam pelas “artéria desse corpo doente que era a sociedade inglesa, e vemos os fundos de fábricas, e não mais aquelas planícies verdes maravilhosas do país”, descreve. 

Por causa de um limite de duração da série colocado pela BBC, a adaptação também condensa a história do livro, cortando situações e personagens. Arthur Hastings, fiel escudeiro de Poirot, por exemplo, não aparece na série. No livro, que combina narrativas em primeira e terceira pessoa, é ele o narrador.

Segundo Gabassi, o roteiro original era mais intrincado e dava mais espaço para apresentar as vítimas em seus ambientes. Poirot só aparecia depois de oito minutos do início da série, o que depois foi considerado inadequado para uma obra feita para a TV aberta. “Foi uma pena perder cenas inteiras. Havia mais terreno para suspeitar de outros personagens ao longo da série”, conta o diretor.

Sobre Malkovich, Gabassi o descreve como um ator meticuloso e detalhista, mas que enlouquecia o diretor de fotografia com uma de suas características: “Com o John, cada ‘take’ é diferente. Para mim isso era um paraíso, mas para o diretor de fotografia era um pesadelo”, conta. O problema eram as marcações determinadas pela luz.

Antes de iniciarem as gravações, Malkovich convidou Gabassi para passar três dias em sua casa em Marselha, no sul da França. No retiro, eles se aproximaram e passaram horas discutindo o roteiro.
“O primeiro dia falamos só sobre os filmes dele. Ele foi um doce com a equipe inteiro, em parte porque a gente criou uma relação de respeito nesses primeiros dias”, diz o diretor. 

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