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Caso Michael Jackson mostra que não há santos, só biógrafos descuidados

É preciso, porém, cuidado para não tratar autor e obra como se fossem sinônimos morais

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O astro Michael Jackson em show em Moscou, em 1996
O astro Michael Jackson em show em Moscou, em 1996 - Reuters
São Paulo

Nunca fui fã de Michael Jackson e nunca me liguei muito no noticiário sobre celebridades. Ainda assim, até eu sabia que havia algo de incomum na sexualidade do ídolo pop e em sua fixação por garotinhos. Se gostasse de suas músicas, não teria nenhuma razão lógica para deixar de fazê-lo agora só porque um documentário traz o que seriam detalhes de como ele se relacionava com os pequenos.

Uma coisa é o autor, que pode ser bom ou mau em muitas dimensões, e, outra, sua obra, que também comporta avaliação multivariada. Seria ingenuidade afirmar que os dois não se relacionam nem se contaminam.

A biografia é quase sempre um elemento fundamental para entender a obra. E, no plano da psicologia individual, pessoas são livres tanto para considerar um autor moralmente tão abjeto que suas realizações se tornem indesfrutáveis quanto para julgar uma criação tão sublime que perdoe eventuais falhas de caráter de seu idealizador. Cada um é cada um.

É preciso, porém, cuidado para não tratar autor e obra como se fossem sinônimos morais. Devemos reconhecer na produção ou performance artísticas algum grau de autonomia, ou nos lançamos numa série de situações absurdas.

Michael Jackson não é o único que entrou na lista de artistas a serem boicotados por ter cometido crimes ou por acusações de desvios éticos que ficam aquém do delito.

Na esteira do movimento #MeToo que atingiu Hollywood em cheio, foram para o índex Dustin Hoffman, Kevin Spacey, Ben Affleck e Oliver Stone, entre outros. Velhas histórias envolvendo Woody Allen e Roman Polanski foram reavivadas.

Não se trata, obviamente, de ignorar crimes que tenham sido cometidos. Fizemos isso por tempo demais. Mas é preciso reconhecer que mesmo pessoas ruins podem fazer coisas boas --e que não devemos deixar de apreciar o que é bom por defeitos de seus autores.

O problema fica pior quando nos damos a liberdade de aplicar a autores do passado os padrões morais de hoje. Se estendêssemos a lógica de alguns movimentos militantes à literatura, teríamos de abrir mão, por exemplo, de Eurípides (misógino), Shakespeare e Céline (antissemitas), Rimbaud (traficante de escravos), Pound (fascista) e, no Brasil, de Monteiro Lobato, que usou expressões racistas.

Na filosofia, o estrago seria ainda maior. Heidegger militou no nazismo e nunca fez um mea culpa público. Aristóteles seria barrado por lapsos em duas categorias. Era escravagista e misógino. E, se formos exigir um tratamento digno às mulheres pelos critérios atuais, também iriam para a fogueira Hegel, Schopenhauer, Nietzsche e Rousseau.

Líderes políticos tampouco escapariam do opróbrio.

Abraham Lincoln, que travou uma guerra civil para libertar os escravos, disse isto: "Não sou nem nunca fui favorável a promover a igualdade social e política das raças branca e negra... há uma diferença física entre as raças que, acredito, sempre as impedirá de viver juntas como iguais em termos sociais e políticos. E eu, como qualquer outro homem, sou a favor de que os brancos mantenham a posição de superioridade". 

Encontramos pérolas racistas em ditos de outras sumidades como Gandhi e (para alguns) Che Guevara.

Eu arriscaria dizer que não existem santos, apenas biógrafos descuidados.

Os limites da ideia de que é a vida que legitima a obra se escancaram com a historieta que conto a seguir. 

O biólogo russo Constantin Merejkowsky (1855-1921) foi o primeiro proponente da simbiogênese, isto é, a teoria de que organelas de eucariontes evoluíram a partir de bactérias que ficaram aprisionadas dentro de células mais simples. 

Só que Merejkowsky não era um cara muito bacana. Nacionalista extremado, antissemita, entusiasta da eugenia, ele abandonou a mulher e o filho e, para piorar, é suspeito de molestar crianças. 

A ninguém, porém, ocorreria de julgar a correção de sua teoria, hoje amplamente aceita, com base em suas qualidades como ser humano. Na biologia, são as evidências que mandam.

Curiosamente, quando passamos das ciências naturais para as artes e as humanidades, aceita-se tranquilamente que a biografia importe mais que o valor intrínseco da obra. O tempora, o mores.

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