Descrição de chapéu Leonardo da Vinci, 500

Obras de Leonardo da Vinci causam briga nacionalista entre França e Itália

Vizinhos duelam para ser destaque nos 500 anos da morte do artista

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Visitantes fotografam a

Visitantes fotografam a "Mona Lisa" no Louvre, em Paris, em dezembro do ano passado Charles Platiau/Reuters

Paris

A onda nacionalista que varre porções cada vez maiores da Europa chegou até a arte, território da circulação e do intercâmbio. Em uma das mais recentes lufadas de patriotismo, sobrou até para 
Leonardo da Vinci.

Às vésperas do quinto centenário de morte do artista italiano, alguns de seus quadros foram objeto de um cabo de guerra entre Roma e Paris. A contenda, iniciada em novembro, só chegou agora ao fim.

Na raiz da disputa está uma grande exposição que o Museu do Louvre, casa da “Mona Lisa”, prepara para outubro a fim de celebrar a efeméride. Em 2017, os altos escalões da cultura de França e Itália tinham fechado um acordo para o empréstimo, à instituição parisiense, de um conjunto de obras-chave de Da Vinci.

Cruzariam a fronteira, entre outros, “O Homem Vitruviano” e “Cabeça de Mulher”, assim como as telas “A Anunciação” e “São Jerônimo”. Em troca, o Louvre cederia temporariamente a um museu da capital italiana vários trabalhos de Rafael, cuja morte completa 500 anos em 2020.

Além disso, o lado francês se comprometeu a só inaugurar sua retrospectiva no fim de 2019, deixando os holofotes e as primeiras celebrações se concentrarem na terra natal do artista, morto na França.

O plano azedou em novembro de 2018, quando a vice-ministra da Cultura do governo italiano, empossado cinco meses antes, publicou um artigo dizendo que os termos do pacto eram inconcebíveis.

“Precisamos rediscutir tudo”, disparou Lucia Borgonzoni, filiada ao partido de ultradireita Liga, uma das metades do díptico que dirige hoje o país. “Os franceses não podem ter tudo. Leonardo é italiano, ele só morreu na França. O empréstimo colocaria a Itália à margem de um grande acontecimento cultural.”

A rixa vem de longa data. Em agosto de 1911, um vidraceiro conterrâneo de Da Vinci surrupiou a “Mona Lisa” do Louvre para devolvê-la à terra natal. O retrato seria recuperado dois anos depois. Na década de 1930, os fascistas brandiram o artista como a personificação mais acurada do gênio nacional. Reunidas em uma exposição, maquetes de algumas das máquinas desenhadas por ele tomavam ares de totens da grandeza tricolor.

A peleja tem até um capítulo boleiro. Quando o Louvre usou “Mona Lisa” para saudar a seleção francesa pelo título do Mundial da Rússia, no ano passado, internautas italianos inundaram as redes sociais com variantes mais ou menos polidas de “ma che cazzo?”.

Passados alguns meses, a publicação do artigo de Borgonzini voltaria a eriçar a turba virtual, que clamou pela devolução, à Itália, de quadros que os franceses teriam roubado —as obras foram vendidas por Da Vinci ao rei de então, Francisco 1º.

Do lado francês, historiadores ajudaram a esquentar a disputa ao questionar o que significava ser italiano na época de principados em que o pintor viveu, já que o Estado que se conhece hoje só passou a existir em 1861.

Até a sua resolução, dias atrás, a altercação em torno do empréstimo era a cereja do bolo de um processo de degradação das relações diplomáticas entre Roma e Paris que começou logo após a posse do novo governo italiano, em junho de 2018.

Um dos primeiros estremecimentos ocorreu quando o presidente francês, Emmanuel Macron, falou em cinismo e irresponsabilidade ao criticar a decisão da Itália de fechar seus portos a embarcações de resgate de migrantes.

Destino de uma das principais rotas de saída da África, a Itália acusa a França (mais distante geograficamente do continente de origem dos viajantes) de ser egoísta na gestão da crise migratória.

Em janeiro deste ano, os vizinhos voltaram a se estranhar em torno do mesmo assunto. O vice-premiê italiano, Luigi Di Maio, disse que o franco CFA, usado em uma dezena de países da África, impede o desenvolvimento desse continente, estimulando a emigração. “É preciso que a Europa tenha a coragem de tratar do tema da descolonização africana”, afirmou.

Em Paris, o Ministério das Relações Exteriores reagiu convocando a embaixadora italiana. Di Maio não se fez de rogado: em 5 de fevereiro, encontrou-se com representantes da ala radical dos coletes amarelos, movimento social que leva milhares às ruas francesas há mais de três meses e ainda sidera o governo Macron. E o pior: declarou seu entusiasmo pela mobilização.

“Ma che cazzo” desta vez foi a reação da França, que tirou seu embaixador de Roma por uma semana, em gesto que, na escala diplomática, é um dos últimos antes da ruptura de relações bilaterais.

O pano de fundo da rusga é a eleição para o Parlamento Europeu, em maio, na qual Macron quer encarnar o cosmopolitismo pró-Europa, e seu nêmesis italiano, o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, o orgulho nacionalista e a primazia da agenda doméstica.

Custou um pouco, mas os dois países em litígio perceberam que Da Vinci nada tem a ver com isso. Dias atrás, os respectivos ministros da Cultura se encontraram. Trabalhos do mestre irão ao Louvre. Quais ainda não se sabe.  

“Trata-se de um patrimônio não somente italiano, mas europeu e universal”, adoçou Alberto Bonisoli, representante de Roma.

Pouco depois, Macron declarou a uma TV de lá que receberia o presidente da Itália, Sergio Matarella, em Amboise, onde Da Vinci morreu, na data da efeméride.

“Sempre houve amizade e amor entre nossos países. Devemos a nossos povos e história ir além de declarações desmesuradas”, disse o francês, não sem logo alfinetar. “Nenhum país da Europa resolverá seus problemas desafiando os outros e se fechando no plano nacional.”

E abriu um meio sorriso de Mona Lisa.

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