Em dezembro de 2017, um conto publicado na revista New Yorker causou frisson na internet. “Cat Person”, da americana Kristen Roupenian, narra o começo de uma relação entre uma mulher de 20 anos e um homem de 34.
Eles se conhecem no cinema em que ela trabalha, começam a trocar mensagens de celular, ela desenvolve uma paixonite —sabemos dos pensamentos e inseguranças dela, mas não dos dele. Eles têm um encontro, e, num determinado momento, ela passa a achar tudo estranho.
Começam a aparecer defeitos demais no cara. Ao invés de cair fora, ela segue, acha que ele beija muito mal, vai para a casa dele após o bar, acha que ele é gordo demais —a descrição do moço colocando a camisinha e de sua pança é um tanto repulsiva. Mas ela segue.
Eles fazem sexo, do qual ela não gosta desde o começo. Ao final, quando ela quer dispensá-lo, ele a chama de puta.
Na internet e nas mesas de bar, leitoras exaltaram o conto como um retrato fiel das agruras femininas. O cara, claro, foi interpretado como um canalha.
Um mês depois, outro texto rodou a internet. Dessa vez, era o relato não ficcional da noite de Grace —a pior de sua vida, segundo a moça de 22 anos— com Aziz Ansari, ator e criador da série "Master of None". Ansari foi achincalhado, tratado de abusador para baixo.
Mas, segundo a narrativa, não há abuso, não há estupro. Grace vai à casa de Ansari porque quer. Todo o resto acontece também porque ela quer. O máximo que se pode dizer daquilo é que ele, e talvez mesmo ela, seria um desajeitado.
Roupenian lança agora o tão aguardado, ao menos pelo mercado, primeiro livro, que reúne 12 contos. Com temas diversos, como “O Espelho, o Balde e o Velho Fêmur”, uma espécie de alegoria tacanha sobre o amor-próprio feminino, e “Sardinha”, sobre uma brincadeira infantil que chega quase ao terror, os contos têm em comum a dificuldade da autora em resolver um final.
Não há, tampouco, um homem decente nos textos, e o maniqueísmo pesa sempre contra eles. Em “Aquela que Morde”, por exemplo, tudo se resolve para uma mulher que deseja morder pessoas a ponto de arrancar pedaços quando sua vítima é um cafajeste que passa a mão em mulheres e as beija à força.
A maioria dos contos é perpassada por uma noção essencial na compreensão e repercussão de “Cat Person”: o consentimento.
Apenas uma noção confusa e ampla do que seja consentimento —e uma um tanto paternalista de desejo— pode levar o leitor a ver a garota de “Cat Person” como a vítima de um homem vil.
No conto de abertura, “Seu Safadinho”, um casal começa a fazer jogos, de início inocentes mas que passam a ser humilhantes e violentos, com um amigo que está triste pelo fim de um relacionamento. Nada, porém, é feito contra a sua vontade. O que o obrigava a ficar? A tristeza? Ou o prazer na perversão?
O filósofo francês Ruwen Ogien já alertava para o problema. As noções de consentimento e dignidade humana têm sido usadas para reforçar a criminalização da sexualidade, e não para sua liberalização, no que ele vê um dos fenômenos atuais mais inquietantes no domínio das liberdades individuais.
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