Descrição de chapéu

Livro vencedor do Jabuti de contos não encanta de todo

Autora promissora, Maria Fernanda Elias Maglio arrisca-se na prosa poética em 'Enfim, Imperatriz'

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Enfim, Imperatriz

  • Preço R$ 40,00 (150 págs.)
  • Autor Maria Fernanda Elias Maglio
  • Editora Patuá

Aquilo que costumamos chamar de prosa poética —incluindo toda a sorte de tentativas, aproximações e arremedos— pode, hoje, definir menos o estilo de uma escrita do que a falta dele. A prosa poética é, em certo sentido, vítima da própria replicação desenfreada e descuidada. 

Há um cemitério de livros ruins narrados em prosa poética —indício de que é fácil ignorar ou subestimar as dificuldades de uma composição que demanda, para ficar nos ingredientes essenciais, precisão e ritmo, equilíbrio e firmeza. Boa quando bem-feita, ainda que raramente bem-feita, a prosa poética é um desafio mesmo para autores veteranos. Para os menos experientes, é um caminho arriscado.

É, também, um caminho comum, que em muitos casos parece ter sido tomado por mero acaso —revelando, no próprio avançar, hesitação e embaraço. Assim, não é difícil detectar o amadorismo —aquela crueza da inexperiência que, no entanto, já nasce desgastada— numa prosa poética. "Enfim, Imperatriz", que levou o Jabuti na categoria contos, fica no meio do caminho.

O primeiro conto, “Dezembro de Deserção”, é ótimo. A paulista Maria Fernanda Elias Maglio consegue executar algo difícil para qualquer autor, algo que, não obstante, é um dos pilares da boa literatura: construir uma teia de subentendidos, jogando intencionalmente com uma série de significados implícitos e mantendo o equilíbrio entre o que revela e o que deixa encoberto. O conto é feito especialmente de boas imagens, qualidade consolidada em outros momentos do livro.

Enfim, Imperatriz, de Maria Fernanda Elias Maglio
"Enfim, Imperatriz", de Maria Fernanda Elias Maglio - Divulgação

“Enfim, Imperatriz”, que dá título à coletânea, não é nada mau. Curioso e imprevisível —adjetivos que, no geral, são aplicáveis a bons contos—, é capaz de inquietar o leitor. “Viva em Maputo” e “Cartas à Irmã”, apesar de não escaparem do lugar-comum, também são bons. Os quatro são exceções à pieguice sufocante do restante.

A matéria-prima dos contos não raro é o clichê do clichê, o que se torna ainda mais intragável pela recorrência. Lá estão, com o sentimentalismo onipresente que resulta da absoluta falta de nuance, os oprimidos e marginalizados deste mundo. E em prosa poética. Não há qualquer tentativa de elaborar dilemas mais complexos ou apresentar construções diferentes das velhas conhecidas. Quase todos os contos foram preparados para o consumo fácil da indignação e da comiseração —e com uma estética que, embora flerte com o estranhamento, não raro está a serviço exclusivo da pieguice. A babá que não deu à luz, mas foi mãe. A prostituta que se nega a fazer sexo e é estuprada. O menino rejeitado pelo pai por não se encaixar no ideal de masculinidade. O mendigo ferido e invisível. A mulher que perde o contato com a realidade e, ainda assim, percebe certas coisas com clareza. Dramas legítimos, mas que necessitam de um pouco mais para virar literatura.

Mesmo contos que poderiam escapar a isso, como “Olhos Executados” e “De Vaca, de Lobo e de Homem”, ainda sofrem da indefinição inerente a certa prosa poética. Aquilo que têm de positivo submerge em um texto que pede mais atenção aos detalhes para funcionar.

Se algumas metáforas, alusões e paralelos são bons, outros são terríveis. Num conto, o amor romântico é como que aproximado de um ataque cardíaco. O personagem leva “a mão ao coração e [acarinha] o peito, numa tentativa de acalmar o amor”. É aí que o pior da prosa poética vem à tona.

Há muita violência e brutalidade em "Enfim, Imperatriz", sobretudo nas descrições —como esta, em que alguém “lutava com o serrote, as veias, a pele colada na serra, o sangue golfando das artérias recém-abertas”. É um ponto forte do livro, que, no entanto, acaba neutralizado pelo coitadismo dos personagens, pelo chavão e pela repetição, e sobretudo por um texto que exige mais cuidado. Lá pela quinta tripa de fora ou coração arrebentado, não sobra nada além do tédio.

A escrita de Elias Maglio tem algo de assertivo que deveria ser preservado. Ela se beneficiaria da eliminação do que há de cafona e piegas: sem a choradeira do coração acarinhado, sobra o essencial. Há algo do staccato de Fleur Jaeggy, sem, por enquanto, a ironia fina e a precisão cirúrgica da ítalo-suíça. Também há uma qualidade muito próxima do simbolismo que poderia ser melhor explorada. É urgente apostar na variedade em detrimento da repetição que enfraquece o livro e anestesia o leitor.

Escrita é treino. Elaborado por uma autora que ainda pode entregar bons trabalhos, "Enfim, Imperatriz" não encanta de todo. 

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