Maior exposição do Oriente Médio abre a era da arte sobre fake news

Bienal de Charjah reflete ansiedade sobre diluição dos limites entre verdade e mentira

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Instalação do artista libanês Akram Zaatari na Bienal de Charjah

Instalação do artista libanês Akram Zaatari na Bienal de Charjah Divulgação

Charjah

​Uma árvore morta estica seus galhos estorricados entre crateras de água salgada, poças cor de ferrugem num pátio abandonado. Vozes dos alto-falantes ao redor contam o triste fim da planta cansada de esperar pelas chuvas que nunca regam esse imenso deserto.

O lamento em forma de uivos e sussurros, obra dos artistas nigerianos Otobong Nkanga e Emeka Ogboh, emoldura as ruínas de uma casa e corta o estranho silêncio dessa cidade à beira do golfo Pérsico, às vezes se misturando aos chamados para a reza que estremecem o skyline de minaretes e plataformas de petróleo cinco vezes por dia.

Mas o ruído de que fala a atual Bienal de Charjah, a maior mostra de arte contemporânea do Oriente Médio agora em cartaz no emirado vizinho à resplandecente Dubai, é bem mais intenso.

Na visão de seus organizadores, a francesa Claire Tancons, o egípcio Omar Kholeif e a australiana Zoe Butt, o mundo está mergulhado numa câmara de ecos, ensurdecido e enervado pelo que entendem como “distorções sônicas e presenças transitórias” provocadas por um grosso fluxo de fake news que solaparam todas as certezas.

Eles não estão sozinhos. O pânico e a ansiedade em torno dos limites cada vez mais porosos entre verdade e mentira, fato e invenção, parece ter se tornado um leitmotif obrigatório no mundo da arte e se manifesta com maior ou menor eloquência em feiras, exposições de museu e agora nas bienais.

Em maio, o americano Ralph Rugoff abre sua edição da Bienal de Veneza também estruturada em torno de reflexões sobre a resistência da verdade aos assaltos das bolhas das redes sociais e correntes raivosas que alicerçaram o recente levante do conservadorismo pelo mundo.

Nesse sentido, a mostra árabe abre a temporada mundial de exposições que tentam dissecar o baque de sociedades rachadas por guerras culturais cada vez mais tóxicas, a esfera pública envenenada por versões dissonantes dos fatos.

Um dos trabalhos mais brutais nessa linha agora em Charjah, do chinês Xu Zhen, refaz em estúdio a polêmica imagem de um urubu a espreitar uma criança esquelética que agoniza no chão. Na série do artista, o bicho é um robô e o bebê, uma criança contratada, mas o choque provocado é o mesmo, transcendendo a mise-en-scène.

Zhen partiu da fotografia premiada do sul-africano Kevin Carter, que se suicidou depois da repercussão negativa de seu flagra da fome no Sudão, para construir essa série. E, num exemplo de como a fúria dos tempos atuais corrói a história, as imagens de mentira do chinês aparecem antes em qualquer busca no Google que a original que detonou toda a repercussão. 

Esse desejo de reescrever a história, às vezes em busca de reparação de danos passados mas também escancarando a malícia de quem manipula os fatos a seu favor, marca uma série de trabalhos na mostra.

O malaio Ahmad Fuad Osman ataca, por exemplo, a memória do navegador português Fernão de Magalhães, celebrado em seu país e na região como figura histórica a mapear o terreno. Em seu lugar, o artista põe a imagem do escravo Enrique de Malacca, o verdadeiro autor da façanha de acordo com as pesquisas do artista em arquivos.

Sua enorme e exagerada instalação reúne documentos, armas, roupas e moedas em torno de um grande busto de Malacca na tentativa de borrar um passado gravado em pedra em nome de outro mito fundador para o seu país.

Mais ambíguo, o jordaniano Lawrence Abu Hamdan filma uma entrevista com o historiador libanês Bassel Abi Chahine sobre um soldado que teve papel decisivo num dos muitos conflitos armados do Líbano. Mas o conhecimento ultrapreciso de seu entrevistado, capaz de identificar a origem de cada arma usada no confronto, não se ancora só na dureza dos dados.

Em frente às câmeras, Abi Chahine diz ser a reencarnação do tal soldado, e o artista se limita a perguntar, como juiz num tribunal, sobre cada ponto que possa comprovar a tese de vidas pregressas sustentada pelo historiador.

Num sinal dos tempos, o artista —revelado pela mesma Bienal de Charjah há dois anos e já escalado para Veneza em maio— sepulta, nesse novo trabalho, a natureza clínica de suas peças antigas, entre elas uma análise dos sons de disparos que provaram que, ao contrário do que dizia, a polícia israelense não usou balas de borracha na execução de dois jovens palestinos.

Os fatos concretos, no caso, perdem sua solidez para dar lugar à encenação. Laura Lima, uma das duas brasileiras escaladas para a mostra árabe, traduz esse sentimento em sua obra, uma cortina preta presa a um trilho no teto que desliza sem hora e aviso pelo meio da galeria, escondendo algumas obras ou separando os visitantes uns dos outros.

É uma pele flácida, quase corpo morto, que se arrasta pelo chão —o indizível que ganha contornos materiais. Sua operação de revelar e ao mesmo tempo esconder encontra eco em outros trabalhos que camuflam o horror com verniz de delicadeza.

É o caso de Shezad Dawood. O britânico construiu um estranho fliperama e quarto de um adolescente para criar uma alegoria sobre abusos políticos e a batalha por espaços públicos no Paquistão a partir da imagem do prédio modernista que seria a embaixada dos Estados Unidos no país asiático. 

Lembrando ilustrações de contos infantis, os desenhos da vietnamita Phan Thao Nguyên delineiam espaços de fábula para narrar uma das maiores tragédias de seu país, quando milhões morreram de fome sob a ocupação japonesa na década de 1940.

O ódio e o perigo da atualidade, dizem esses trabalhos, parecem se esconder sob superfícies lúdicas, a interface fofinha das redes sociais a mascarar sua radioatividade. 

Noutro pátio da mostra, a artista suíça Pamela Rosenkranz dá um corpo a essa ideia. Ali rasteja uma cobra robótica que desperta do sono na presença de celulares. É uma reação de seu mecanismo às ondas de dados que cortam o ar —a informação como ópio e veneno dos nossos tempos.

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