Morreu a grande médium do inconsciente social brasileiro

Mariza materializava em ilustrações brutais aqueles medos profundos, as pulsões irrefreáveis, os desejos de vida e morte recalcados no escuro mais fundo do país

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mulher com sapo na boca
Ilustração de Mariza de 1985 - Mariza/Folhapress
Laura Capriglione
São Paulo

Morreu Mariza Dias Costa aos 66 anos em São Paulo, nesta quinta-feira (28). Morreu a grande médium do inconsciente social brasileiro, que materializava em ilustrações brutais aqueles medos profundos, as pulsões irrefreáveis, os desejos de vida e morte recalcados no escuro mais fundo do país.

Por causa dessa capacidade de nos traduzir no traço de nanquim e em colagens imprevisíveis, Mariza teve nos jornais o seu habitat. Foi a mais importante ilustradora editorial brasileira, seus trabalhos tendo acompanhado os textos de Paulo Francis (1930-1997) desde os tempos do mitológico “Pasquim”, marco da imprensa alternativa. Ela o seguiria na mudança para a Folha, na coluna “Diário da Corte”, a partir de 1978.

Ilustradora titular do principal colunista do jornal, Mariza viveu tempos de reconhecimento e prestígio, seus trabalhos transformados em pôsteres impressos em área generosa.

Pudera. Era uma mulher de cultura universal e nunca arrogante. Falava perfeitamente o francês, inglês, espanhol e italiano, além do português, é claro. Não passava vergonha no guarani falado no Paraguai, no grego e no árabe, que aprendeu em Bagdá. A glossolalia vinha da vida de globe-trotter do pai, o diplomata Mario Loureiro Dias Costa, que a levava na bagagem para os locais em que serviu.

Não foi uma formação acadêmica, contudo. Adolescente ainda, largou a escola e apaixonou-se pela gravura e pela ilustração, especialmente pelo trabalho de Vão Gogo (pseudônimo de Millôr Fernandes), e o de Péricles, que fazia o “Amigo da Onça”. Da mesma época é o convívio com as substâncias capazes de provocar alterações do estado de consciência, como a maconha, o LSD, o Mandrix (“um horror”), o Artane (“pior ainda”). “Qualquer coisa era consumida avidamente”, me disse ela.

Por esta época, Mariza ocupava o tempo estudando história da arte, Idade Média, Roma Antiga. A atenção, porém, ia longe de reis, rainhas ou papas. Concentrava-se nas criaturas antípodas, aquelas que habitavam as beiras, as proximidades dos precipícios em que a Terra Plana (atual isso, hein?) supostamente acabava.

Com grande entusiasmo, Mariza descreveu-as para mim, em 2013:

“Tinha os cinocéfalos, criaturas com cabeças de cachorros, os panótios, com orelhas enormes que iam até os pés e serviam para voar. Havia as criaturas com olhos na altura dos ombros e a boca na altura do umbigo. Eu era fascinada por essas criaturas, saídas de uma pastelaria do inconsciente”, disse. Mariza comprou toda a pastelaria e trouxe-a ao Brasil.

Homens engravatados, simbolizando o poder, apareciam em suas ilustrações dominados por seres fantásticos, ou explodiam em um grito mudo, de suas cabeças aflorando serpentes, mulheres nuas, caveiras, gremlins, sob um sol triste tropical.

Porque tinha muita tristeza empoçada em Mariza. Em 1977, nasceu-lhe o único filho, Diogo, com problemas incuráveis de malformação cardíaca. Nas poucas vezes que falou sobre o assunto, ela fez questão de dizer que o problema do menino não teve relação com as drogas: “Nesse período, eu não usava nenhuma droga. Só cigarro de tabaco mesmo.”

Com dois anos e meio, depois de muita luta, Diogo se foi. Mariza mergulhou em uma depressão sem fim. O gênio dentro dela reagiu criando uma arte mais poderosa, mais acre, mais violenta, mais pesada, enquanto ela mesma, no convívio, tornava-se mais e mais doce, gentil e generosa.

Sempre às voltas com problemas financeiros (ela nunca lidou bem com números, nunca conseguiu nem recitar a tabuada do três), mesmo assim Mariza oferecia perfumados e saborosos jantares em sua casa na Lapa, em que cumulava o convidado de delicadezas.

Desde 1999, Mariza ilustrava a coluna semanal de Contardo Calligaris, a quem considerava um amigo distante. Para complementar a renda, de tempos em tempos, a mulher magricela, pernas fininhas, a cabeça sempre flamejante porque insistia em tinturas de cabelo com tons de vermelho fosforescente, percorria as mesas da Redação da Folha, oferecendo aos repórteres e editores os originais de ilustrações já publicadas no jornal, vendidos na xepa da necessidade.

Passava das 23h desta quinta-feira (28), quando a grande Mariza, médium do inconsciente social brasileiro, como eu disse acima, resolveu sair para comprar jornal. Um mal súbito e ela foi levada ao Hospital das Clínicas, em Pinheiros. Não resistiu. Não se sabe ainda de que ela morreu. Eu só consigo me perguntar que notícia ela terá lido antes do fim.

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