Descrição de chapéu Artes Cênicas

Venezuelana lambe botas de militares em crítica a regime totalitário

Artista autoexilada, Deborah Castillo apresenta performance na avenida Paulista, dentro da programação da MITsp

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São Paulo

À época presidente da Venezuela, Hugo Chávez decidiu reabrir o túmulo de Simón Bolívar faz quase dez anos. A ideia era retirar amostras de DNA para reconstituir os traços do militar, que auxiliou no processo de descolonização da América Latina no início do século 19.

Vendo a empreitada do governante, a artista Deborah Castillo decidiu: queria fazer o mesmo. Não era exatamente um procedimento científico, mas o que a performer buscou era fazer também um gesto iconoclasta. Em sua performance “O Beijo Emancipador”, ficava frente a frente de um reluzente busto dourado de Bolívar. Punha-se a acariciar a imagem do libertador, depois a beijá-la, lambê-la com ternura.

O trabalho e a mostra em que foi realizado em 2013, em Caracas, acabaram censurados pelo governo. “Fui denunciada em um canal do Estado, como se eu fosse a profanadora da pátria, como se estivesse faltando com respeito ao pai da pátria”, diz a artista, hoje aos 48. “Eu não tenho nada a dizer sobre Bolívar como pessoa, mas, sim, sobre o que o governo chavista fez com a sua imagem. Então eu eu tomo a imagem de Bolívar para desestabilizar e resistir ao sistema. É minha crítica à maneira como tomaram a imagem de Bolívar para dominar o povo.”

No ano seguinte, Castillo decidiu deixar seu país e desde então vive em Nova York. Nunca mais voltou à Venezuela porque sente que não tem liberdade de trabalhar lá. “Não sou uma exilada, sou uma deslocada. Queria estar na Venezuela, mas não posso, senão perco a liberdade de expressão. Um dos problemas mais graves é o desmantelamento do aparato cultural.” A única maneira de ter uma mostra num museu ou numa instituição oficial, segundo ela, é fazer propaganda ao Estado.

Parte da família ainda vive no país, mas nem sempre consegue se comunicar com a artista. “A situação no último ano piorou muito. Às vezes fico três dias sem conseguir falar com minha mãe, eles passam uma semana sem luz, água, internet. A Venezuela começou como um projeto socialista e hoje não tem nada de socialista. O que tem de socialista um lugar em que as pessoas estão comendo lixo, bebendo água de esgoto? É uma humilhação humana.”

Mas não é apenas do sistema venezuelano que trata o trabalho de Castillo. Ela versa muito sobre o poder e o desejo e como muitas vezes os dois caminham juntos, se cruzam. “Não me interessa criticar a direita ou a esquerda, mas estudar, a partir da imagem, como essas estruturas de poder vão em paralelismo em estrutura. Os sistemas totalitários, não importa onde sejam, são opressores.”

Como ela faz em “Lamebrasil, Lamezuela - Questionamentos ao Poder na América Latina”, performance que ela apresenta dentro da MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Nela, ajoelha-se e lambe botas de militares, num gesto de obediência e desejo.

Ainda que busque ícones históricos e figuras políticas, o que faz em seu trabalho é questionar a estrutura e a teatralidade do poder —muitas vezes com humor negro, como faz em sua série de fotonovelas, em que cria situações absurdas, de tom político. Como no mito de Sísifo, que sobe a montanha com uma pedra e, já no topo, a deixa cair, ela critica como os governos latino-americanos não dão continuidade a projetos de gestões antigas, sempre partem do zero e não dão espaço para desenvolvimentos sociais mais profundos.

Mas muito, inevitavelmente, é embebido de sua experiência venezuelana. “É como um amante tóxico”, diz a artista. “Nós, que estamos fora, ficamos angustiados pelos que estão dentro. É um duelo que você leva para onde vai.”

Lamebrasil, Lamezuela - Questionamentos ao Poder na América Latina

  • Quando dom. (17 e 24/3), às 12h
  • Onde avenida Paulista esquina com a rua Teixeira da Silva
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