Auto-Tune virou instrumento musical, dez anos após ter sua morte decretada

Entenda como o programa para afinar a voz deixou de ser vilão que pasteurizou os sons deste milênio para virar força criativa

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Montagem com imagens de artistas que usam  Auto-Tune, programa para afinar a voz, deixou de ser o vilão que pasteurizou os sons deste milênio para virar força criativa

Jay-Z, Future, Cher, Drake, Kanye West, Britney Spears, artistas que usam Auto-Tune Montagem Jairo Malta

São Paulo

"Sei que estamos vivendo uma recessão, mas a música que vocês estão fazendo vai gerar uma grande depressão”, rima Jay-Z em “D.O.A. (Death of Auto-Tune)”, música que saiu há uma década. Na ocasião, um dos maiores rappers do mundo dissecava as paradas de sucesso para atacar de frente o que considerava um indício da pasteurização na música pop —o Auto-Tune.

Surgido em 1997, o software de afinação digital de vozes representava uma revolução, mas pouca gente de fato acreditava que ela se tornaria o elemento pop mais marcante da música neste milênio.

“Há 15 anos, quando a coisa virou quase hegemônica na produção pop mundial, pensei: ‘Cara, daqui a dez anos, ninguém mais vai aguentar’”, lembra Daniel Ganjaman, produtor conhecido pelos discos de Criolo, mas com trabalhos de rock e MPB no histórico.

Jay-Z, claro, estava errado. Embora não formal, seu “pedido de desculpas” acabou sendo “Apeshit”, single do ano passado com clipe gravado no Louvre. A grande declaração da música veio nos créditos —o refrão, encharcado de Auto-Tune, foi composto pelo Migos, trio de gigantes do trap americano.

Foi a rendição de Jay-Z ao que há de mais avançado na música contemporânea ultra-popular, a sonoridade que faz de nomes como Drake, Cardi B —ambos atrações do Rock in Rio este ano— e Post 
Malone
os reis do streaming.

O trap, indissociável do Auto-Tune, fez do rap o gênero mais ouvido nos Estados Unidos, mas sua influência vai além desse uso estético para construir uma voz propositalmente “robótica”.

“Hoje, é parte do processo de gravação”, afirma Ganjaman, notando como a popularização do software gerou uma nova profissão, os engenheiros de som especializados em tratamento de vozes. Na atualidade, praticamente nada do que chega a novos ouvidos é orgânico.

O som de uma voz “autotunada” foi apresentado ao mundo por Cher, quando “Believe”, de 1998, foi a 
canção mais ouvida em 23 países. Em 2001, o Daft Punk explorou ainda com mais força a voz eletrônica na pegajosa “One More Time”.

O Auto-Tune foi lançado pela empresa Antares Audio Technology quando o computador passava a ser o protagonista dos estúdios. A ideia foi do matemático e flautista amador americano Andy Hildebrand. Ele aplicou no software os algoritmos complexos que desenvolveu trabalhando na indústria do petróleo. Hildebrand criou o Auto-Tune depois do pedido de um amigo por “uma máquina que me faça cantar afinado”.

“O Auto-Tune corrige o tom da melodia que você está cantando para se adequar ao tom da música”, explica Lucas Spike, produtor brasileiro de trap, que assinou o hit “Plaqtudum”, da Recayd Mob. “Muita gente acha que é truque, para enganar e dizer que você canta bem. Mas, na realidade, você usa conforme o seu objetivo.”

Por muito tempo, o Auto-Tune foi visto como o “Photoshop da música”, responsável por eliminar as imperfeições e, com elas, a subjetividade e a autenticidade das performances vocais.

“O que incomoda é o uso desenfreado de recursos de afinação de voz”, opina Ganjaman. “O que acontece? Ninguém mais desafina, ninguém se dá o direito de desafinar, o que compromete absurdamente a interpretação real do artista. É uma estética que está implementada de forma quase obrigatória”.

Segundo Rodrigo Gorky, ex-Bonde do Rolê e atual produtor de hits de Pabllo Vittar, o uso do Auto-Tune como “corretivo” é menor do que o Melodyne, um programa concorrente, criado em 2001. “Hoje, é melhor pensar no Auto-Tune como o filtro do Instagram, enquanto o Melodyne é o Photoshop. O Auto-Tune é um efeito, como distorção, fuzz ou delay. É no Melodyne que a gente afina vozes sem parecer que foram mexidas.”

Há dez anos, a discussão ainda era a ameaça à autenticidade da performance, mas a geração que cresceu ouvindo rádio nos anos 2000 já tinha a afinação eletrônica como regra. E o Auto-Tune enquanto efeito, era febre com Black Eyed Peas, Britney Spears, Kesha ou Lil Wayne.

Em 2008, com “808s & Heartbreak”, um disco emotivo, Kanye West desenvolveu a ferramenta, anteriormente usada por MCs como T-Pain. Nos anos 2010, apesar dos esforços de Jay-Z, o rap acabou abraçando o Auto-Tune.

“O trap vem do Auto-Tune”, diz Spike, o produtor. “Depois que começaram a usar, o rap mudou até ser o que é agora. Acho difícil sair de moda. Trap tem que ter Auto-Tune.”

Spike já aprendeu a produzir com o software, ouvindo gente como Travis Scott, Future e o próprio Drake. No Brasil, Raffa Moreira e Matuê, de jeitos distintos, são referências.

A chegada dessa tecnologia vista como revolucionária trouxe certas mudanças irrevogáveis. Hoje, o esforço não se dá com horas em busca do melhor take, e sim na arquitetura de uma melodia. A própria maneira de se encarar a performance na música pop mudou. Cantar afinado —orgânica ou sinteticamente— virou regra. A diferença é ter o timbre mais original, a harmonia mais criativa.

O Auto-Tune representou a perda da ingenuidade do ouvinte, manipulando aquilo que era tido como a conexão mais pura e humana entre um músico e seu ouvinte —a voz.

Depois da democratização do acesso à tecnologia, o Auto-Tune também acaba sendo um caminho para artistas periféricos, como a pernambucana MC Loma (dona de 250 milhões de acessos só com “Envolvimento”), terem sua voz disseminada —não por saber cantar afinado, mas por criar uma voz cativante em um computador.

Dez anos depois, o Auto-Tune não apenas continua vivo, ele é o som de uma era, talvez a mais importante revolução estética da música neste século. “[A queixa de Jay-Z] não faz nem sentido”, diz Spike. “Auto-Tune é estética, estilo. Importa mesmo um artista saber cantar? Para mim, vale muito mais a intenção e o objetivo.”


O Auto-Tune é o tema do primeiro Expresso Ilustrada, podcast de cultura da Folha, que estreou nesta quinta (25). Novos episódios saem sempre no mesmo dia, às 16h. O programa está disponível em todas as plataformas de streaming.


Britney Spears
A fama de má cantora nos shows não impediu Britney Spears de fazer um sucesso imenso nos anos 2000. ‘Piece of Me’, de 2007, é recheada de Auto-Tune

Drake
Há anos o artista mais ouvido do mundo nas plataformas de streaming, ele usa e abusa do Auto-Tune. Um dos maiores hits de 2018, ‘Sicko Mode’, é uma parceria dele com outro titã do trap, Travis Scott

Cher
‘Believe’, de Cher, foi febre nas pistas de dança no fim dos anos 1990 e chamou atenção por ser o primeiro grande sucesso a conter doses perceptíveis de Auto-Tune. ‘Believe’ saiu em 1998 e foi primeiro lugar nas paradas de 23 países

Future
Um dos grandes nomes do trap de Atlanta, Future tem um jeito único de usar o Auto-Tune. Músicas como ‘No Matter What’ (2011), com 27 milhões de reproduções no YouTube, influenciaram tudo o que viria depois no gênero

Jay-Z
Depois de ganhar um Grammy com ‘D.O.A. (Death of Auto-Tune)’, de 2009, Jay-Z viu o programa ficar ainda mais popular. Em 2018, ele se rendeu à ferramenta no single ‘Apeshit’, parceria com sua mulher, Beyoncé

Kanye West
Em 2008, o rapper lançou um dos seus discos mais tristes, ‘808s & Heartbreak’. ‘Heartless’, que parecia uma sofrência robótica, virou um clássico no uso do software 

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