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Miguel de Almeida

Cinemark, querendo ou não, cumpriu o plano de marketing bolsonarista

A suspensão de filme sobre 1964 municiou mais um ataque da direita reacionária

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O Brasil não conhece o Brasil, alertou Antônio Carlos Jobim. A cada dia ou acontecimento a estupefação do autor se mostra um epitáfio.

Porque, se o Brasil é um país cheio de gente dando adeus (no olhar de Oswald de Andrade), o que nos daria um caráter sempre emocional e amoroso, por outro lado aqui é um dos locais mais violentos do mundo.

Você pode ter sua opinião (caso dos Bolsonaros), mas não se briga com os fatos: os cerca de 60 mil homicídios anuais, com tendência de subida, não é papo esquerdista, é uma realidade.

Avenida Presidente Vargas no dia 31/3/1964
Avenida Presidente Vargas no dia 31/3/1964 - Arquivo Nacional/Divulgação

Temos então um cantinho, um violão e um corpo estendido no chão.

E o Brasil que saiu das urnas, raivoso e rancoroso, deseja mais cadáveres. Basta seguir a cronologia: há duas semanas o presidente Bolsonaro ordenou a comemoração do 31 de março, segundo seu porta-voz. Diante das reações, refugou no tom e alegou ser uma data a ser rememorada. 

Era blefe. No domingo (31), o Palácio do Planalto divulgou vídeo de tom apologético ao Golpe de 64 —logo bisado nas redes pelo filho-presidente Eduardo Bolsonaro.

A estratégia de marketing prosseguiu: um grupo alugou várias salas do circuito Cinemark para a exibição de “1964, o Brasil entre Armas e Livros”, filme que se propõe a revisar o movimento a partir uma visão direitista.

O Cinemark se arrependeu de haver alugado seu espaço à produção, não a exibiu mais e soltou um comunicado pedindo escusas por se ver envolvida numa briga política. 

Bastou para os cães digitais de Goebbels forjarem o insulto: CineMarx.

Pois o Cinemark, querendo ou não, cumpriu o traçado pelo plano de marketing bolsonarista: a suspensão das sessões forneceu munição para mais um ataque da direita reacionária denunciar um tal marxismo cultural —se antes foi exibido o filme "Lula, Filho do Brasil", por que não uma outra visão sobre 1964? 

Caso a rede de cinemas houvesse deixado rolar as exibições, o barulho seria outro e finalmente o Brasil poderia saber quantos bolsonaristas prestigiam a arte cinematográfica (pode rir). 

Edir Macedo se viu nu no púlpito (ou sem plateia) ao inflar a bilheteria de suas cinebiografias: mesmo de graça, foram pouquíssimos os incautos fiéis que desejaram viver em terra mais o martírio de assistir ao filme da vida do bispo. 

No período pós-Watergate, vários dos envolvidos, inclusive presos e condenados, publicaram suas versões em livros. O que fez a maior parte do público americano? Queimou os volumes em praça pública? Pediu a censura junto à editoras? Nada disso. Apenas tratou de não comprar quaisquer dos títulos. Condenou-os à devida irrelevância. 

A guerra ideológica bolsonarista se baseia na capacidade de indignação de seus oponentes. Ao reagir, se faz o jogo. Vale a constatação de outro filósofo brasileiro —Machado de Assis, no caso: não se briga com diagnóstico. Ou outra, a propósito: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".

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