Grupos usam peças de Brecht para valorizar poder político dos índios

Em adaptação de 'Horácios e Curiácios', companhias Livre e Oito Nova Dança narram a vitória dos mais fracos

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Cena do espetáculo 'Morte e Dependência na Terra do Pau Brasil', das companhias Livre e Oito Nova Dança - Lenise Pinheiro/Folhapress
São Paulo

“Esse novo governante está querendo acabar com a gente. Ele está falando que o índio não existe mais, porque os índios se vestem igual ao branco, e que, então, somos todos iguais. Mas ele vê de longe, ele fica falando de longe, fechado em um lugar onde ninguém avista ele.”

Essa é uma fala do cacique Tinini Juruna, dos yudjá, ou jurunas, que povoam o norte do parque indígena do Xingu.

Tinini está rebatendo, em um vídeo que é exibido aos fins de semana no hall do Museu do Ipiranga, suntuoso marco da nossa independência, as justificativas do atual governo para fragilizar os dispositivos legais que estão determinando mudanças nas demarcações de terras indígenas no país. 

Dois exemplos: Bolsonaro transferiu a competência de demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio para o Ministério da Agricultura, um, digamos, adversário histórico. Também houve, nesse sentido, a troca da direção do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente após considerarem também sua fusão com a Agricultura. E tem muito mais por aí. 

O vídeo em que o cacique fala foi registrado pela produção do experimento cênico “Morte e Dependência na Terra do Pau Brasil”, realizado pela Cia. Livre e pela Cia. Oito Nova Dança e é projetado em um ponto bastante provocativo —a performance que inclui cantos e danças, prossegue até o dia 24.

Ao projetar a imagem do cacique em uma escultura do bandeirante Fernão Dias localizada no hall central do museu, o espetáculo procura uma inversão —e ela não será a única do projeto.

Se ali foi homenageada, por meio dessa figura ímpar e toda musculosa, a parte mais forte de uma batalha desigual —ou, transformada aqui em mito, a parte que vem avançando sobre os indígenas desde a colonização —o espetáculo nos diz que a batalha não acabou.

Isso significa que os povos indígenas poderiam, quem sabe em um futuro distante, virar o jogo? Que seja uma visão ousada ou ingênua, podemos supor ou sonhar que sim. Mas essa história se espelha em uma obra fictícia, escrita por Bertolt Brecht (1898-1956).

Chama-se “Os Horácios e os Curiácios” a peça didática, ou de aprendizagem, escrita pelo dramaturgo alemão, figura notória alinhada à esquerda e que dispensa apresentação de sua importância no teatro. “Os Horários e os Curiácios” agora ganha, nessa proposição de dar voz aos povos indígenas, uma livre adaptação, com participação do público, em momentos que o espetáculo dá voz à plateia.

A ideia de fazer esse experimento cênico, quase uma intervenção urbana, faz parte do processo de um espetáculo que vai estrear em setembro, conta a diretora Cibele Forjaz. Desde os anos 2000, ela estuda a sobre a cosmologia e os mitos ameríndios. 

Para o trabalho, o grupo se juntou à Cia. Oito Nova Dança, que também estuda questões dos povos indígenas, a partir principalmente da visão proposta pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, aquele que, bem resumidamente, fala sobre a “inconstância da alma selvagem”. 

Outras quatro peças de Brecht, além desta, foram estudadas pelos dois grupos, todas pertencentes aos anos que antecedem 1933, aquele em que Hitler se torna chanceler da Alemanha, depois da vitória do Partido Nazista.

"Nessas nossas leituras, foi ficando cada vez mais patente que as peças do Brecht na ascensão do nazismo, de 1927 a 1933, são assustadoramente atuais”, diz Forjaz. Como essas peças reverberavam o que acontecia na sociedade alemã? É bastante assustadora a semelhança com o que vivemos hoje.”

Ela se refere a ascensão gradual do nazismo em um período de ressentimentos, do ódio ascendente em parte causada pela falta de estima do povo alemão em decorrência da derrota na Primeira Guerra.
“As peças falam de como esses sentimentos vinham tomando conta das entranhas da sociedade. É um fascismo ainda em formação”, conta.

Os “Horácios e os Curiácios" é relativamente otimista neste sentido. Tem um spoiler aí à  frente, mas, caro leitor, não dê bola para isso aqui. Vamos supor que não é importante a "surpresa" de saber que Hamlet morre no final da história.

Houve uma batalha entre as cidades de Alba Longa e Roma, sendo Alba Longa de longe —pelo armamento que tinha— a mais forte delas. Ficou definido que três irmãos romanos (os Horácios) lutariam contra três irmãos adversário de Alba Longa (os Curiácios).

Os Curiácios haviam invadido as terras dos Horácios. No decorrer da batalha, eles matam dois dos irmãos em uma briga dificílima. O último deles, porém consegue fugir.

A batalha está aparentemente perdida. Mas, para que vencessem de fato a disputa, era necessário matar o último, o mais esperto, que consegue ir revertendo a situação e acaba por matar, sozinho, seus três adversários.

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