'Kiki — Os Segredos do Desejo' fala de sexo com leveza e excessos

Comédia apresenta obsessões, mas naturaliza comportamentos violentos contra mulheres

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São Paulo

Como uma comédia de costumes, o filme “Kiki — Os Segredos do Desejo” discute tabus sexuais de forma leve. Esses fetiches são vistos ora como problema, ora como solução para impasses dos relacionamentos, mas também com “leveza exagerada” em algumas cenas, segundo análise da jornalista Fernanda Mena.

Baseada no filme australiano “A Pequena Morte”, a obra espanhola foi discutida no Ciclo Cinema e Psicanálise, realizado em uma parceria da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) com o Museu da Imagem e do Som e a Folha.

Acompanhando quatro núcleos narrativos, “Kiki” introduz fantasias e comportamentos sexualmente excitantes, conhecidas como parafilias, que vão além dos mais conhecidos sadismo, masoquismo, voyeurismo e, mais recentemente, urofilia —popularmente difundida como “golden shower”. Por exemplo, a dendrofilia, que é a excitação por plantas, ou a dacrilagnia, que é a excitação pelo choro do parceiro.

Quando essas práticas deixam de ser saudáveis para algum lado de uma relação, elas passam a ser tratadas como transtornos parafílicos. “Entre o comportamento natural e o desviante, cabe um mundo de possibilidades, o que abre um debate sobre o que é ou não normal no campo do desejo”, diz Mena.

“A sexualidade é bizarra, é aberrante, é desviante”, afirma Cecília Orsini, psicanalista também presente no debate. Para ela, não há como fugir de Sigmund Freud. Em “Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, o austríaco descola o desejo sexual do objeto, de forma que entre os dois não há pré-determinação da experiência singular e subjetiva de cada um.

Freud, um homem de seu tempo, toma a heterossexualidade como norma, e relativiza cada uma das supostas perversões, das menos indigestas como a homossexualidade às mais problemáticas, como a pedofilia.

Segundo a teoria psicanalítica, cada prática deve ser relativizada em referência ao corpo social onde ela emerge. “Na Grécia clássica, o corpo feminino era poluído, decaído e o amor homossexual era valorizado. Já no campo, a zoofilia é uma prática para a introdução de um garoto à vida sexual”, explica Orsini.

E, apesar do psicanalista classificar como “patológicas” perversões que superam nojo, vergonha, horror ou dor, como a necrofilia, não é possível tachar estes praticantes como doentes mentais. Até porque muitas são as pessoas perfeitamente normais em suas áreas de atuação, mas que se revelam doentes na vida sexual, como é o caso do personagem do filme com sonofilia que, por se excitar vendo a mulher dormir, se satisfaz ao estuprá-la.

“Para a psicanálise, todas as práticas sexuais são legítimas, o que não quer dizer que elas sejam legais juridicamente ou aceitas moralmente”, esclarece Orsini. Para contornar isso, ela explica que recorreremos a uma espécie de barganha, chamada tecnicamente de sublimação. “Criança gosta de manipular as fezes. [Então] a cultura oferece o bolinho de areia, depois a massinha, e por fim um derivado palatável, que é o ceramista.”

É justamente por normalizar o moralmente questionável que Fernanda Mena diz que o filme é “falso transgressor”. Por um lado, “Kiki” acerta tanto pela abordagem festiva que dá a temas reprimidos por um passado de Inquisição e ditadura franquista, quanto por colocar as mulheres como agentes, e não objetos, como o cinema historicamente as representou. Por outro, erra ao “representar as mulheres como fonte de boa parte dos desvios de normalidade, travar uma perseguição misógina e naturalizar comportamentos violentos em relação a elas”.

Além do já citado estupro marital, Mena elenca a personagem que se torna uma espécie de vilã do próprio marido ao descobrir que se excita com o choro dele e, assim, o faz sofrer para que se satisfaça sexualmente. Outra, diante de uma crise conjugal, se apaixona pela melhor amiga do marido. Uma terceira precisa de violência para atingir orgasmos mais intensos e faz o namorado parar no hospital na tentativa de satisfazê-la. Por fim, há uma personagem que possui tantos transtornos e manias que afasta qualquer possibilidade de interação no encontro.

“Por que a sexualidade feminina é vista ainda hoje como uma ameaça?”, pergunta Fernanda Mena. “Vale tudo na busca pelo prazer sexual?”

A jornalista conclui com Nelson Rodrigues: “Se todos conhecessem a intimidade sexual um dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”.

O próximo encontro do Ciclo Cinema e Psicanálise acontecerá no dia 22 de maio às 19h, com a exibição do filme "Vice", no MIS (av. Europa, 158, Jardim Europa, São Paulo). É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h.

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