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Longas sobre 'cura gay' exibem lado pernicioso das boas intenções

Filmes tratam a vítima como culpada do conflito sexual e querem curá-la de uma doença que é social

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"Boy Erased" e "O Mau Exemplo de Cameron Post" revelam como o mundo das boas intenções pode ser pernicioso.

Em ambos os filmes, adolescentes estão às voltas com os primeiros sinais da sua homossexualidade, cheios de insegurança e culpa. Sofrem com pais autoritários ou adultos donos da verdade, fanatizados por suas convicções religiosas.

Vejam-se os casos de psicólogos que atuam na reorientação sexual de LGBTs, sob pretexto de diminuir seu sofrimento. Tratam a vítima como culpada do conflito com sua sexualidade e querem curá-la de uma doença que é social. Sua hipocrisia ignora o aparato repressivo da sociedade que provocou tal conflito.

Assim como no Brasil atual, dividido entre azul e cor-de-rosa, encontram-se aí atitudes irracionais, amparadas na fé religiosa mais do que na maturidade de adultos responsáveis pela educação dos jovens.

Tanto o pai pastor de "Boy Erased", que brande seu narcisismo mal disfarçado em amor, quanto a psicóloga maquiavélica de "Cameron Post", que sorri enquanto reprime, são movidos por convicções cristãs sectárias.

Ora, séculos de história acumulam crueldades de toda ordem contra a sexualidade humana, perpetradas por representantes de Deus, em nome de Deus. É assustador confirmar como, ainda na atualidade, esses fatos reiteram a incapacidade do cristianismo em compreender a sexualidade humana e, por extensão, o amor.

O impacto desses dois filmes só não é maior por abordarem a violência psicológica vista de fora, ao invés de mergulhar no drama interior do rapaz e da moça. Desde o início, são óbvias demais as evidências de que as duas instituições para curar LGBTs carecem de legitimidade, baseadas que estão na manipulação, no autoritarismo e no desrespeito a jovens adultos.

Claro que tal obviedade não diminui o impacto desses filmes.

"Boy Erased" teve lançamento suspenso nos cinemas brasileiros, o que gerou suspeitas sobre seu incômodo potencial. Conviria que a Universal desse alguma informação plausível. Pretextar, como fez a distribuidora, que tudo não passou de uma decisão mercadológica beira o cinismo em relação a um filme que tem no elenco Nicole Kidman e Russell Crowe, intérpretes prestigiados nas bilheterias.

Quais são as forças ocultas por trás de tal medida, não sei. Pero que las hay, las hay. E aqui não cabe nenhuma ingenuidade. Considerando o poder econômico de muitas igrejas, pode-se supor uma capacidade de manipulação ilimitada.

Se de fato ocorreu censura ou não, é uma boa ocasião para perguntar por que religiosos fanáticos tanto temem a diversidade sexual. A julgar por sua obsessão corretiva, deve ser algo que os atemoriza até se tornar um fetiche com sinais trocados.

Valeria a pena acompanhar a gênese desse fascínio fetichista que busca impedir o gozo do outro, até o ponto de massacrar psicologicamente LGBTs.

Em "Boy Erased", “baseado em fatos reais”, lê-se nos letreiros finais a notícia de que o fanático diretor da casa de cura para homossexuais vive hoje com seu marido no Texas. Tal fato ofereceria alguma chave para decifrar os motivos que ligam o fanatismo religioso e o preconceito sexual, no quadro complexo da sexualidade humana.

Trata-se possivelmente de homofobia internalizada ou, em outras palavras, a projeção daquilo que o sujeito teme dentro de si mas castiga no outro. Mecanismo, aliás, muito conhecido na vida real e já abordado marginalmente em outros filmes —como "Angels in America" e "Beleza Americana.

Talvez uma guinada reflexiva pudesse mudar o foco para dissecar o percurso de um homofóbico até o entendimento de sua própria sexualidade interdita. Como no caso do verdugo de jovens homossexuais que hoje vive com seu marido no Texas.

Ou então, voltar os olhos para os escândalos de pedofilia epidêmica entre o clero católico, obrigado ao celibato e à castidade, por normas institucionais. Bem ilustrado, aí se vê do que se trata: o retorno do reprimido.

 
 
João Silvério Trevisan

Escritor e cineasta, é autor de 'Devassos no Paraíso' e 'Pai, Pai'

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