Filho das desigualdades da sociedade latina, Alex é sedutor e também violento. Quando criança, sonhava em ser astronauta, mas acaba por virar garoto de programa e logo se envolve com uma organização criminosa. Tem prazer em seu papel de assassino de aluguel, descreve com orgulho suas matanças. Mas quer se redimir toda hora e vai à igreja se confessar.
É, afinal, um herói ambíguo e complexo, como os países latinos, diz o dramaturgo e diretor franco-ruguaio
Sergio Blanco sobre o personagem de “Tráfico”, monólogo que tem sessões em São Paulo nesta semana depois de passar pelo Festival de Teatro de Curitiba.
Blanco costuma fazer referências à mitologia em suas obras. Aqui, faz de Alex quase um personagem bíblico. Tem 33 anos, como Cristo, trabalha numa rua chamada Jerusalém (de uma cidade latina indefinida) e fala da mãe como uma santa.
“Meu interesse era trabalhar o mito contemporâneo, da prostituição masculina, muitas vezes a única saída para esses garotos, e do sicariato, de jovens que entram para organizações criminosas, de assassinos de aluguel”, diz Blanco.
“Tráfico” foi um processo de criação distinto de Blanco. No ano passado, o dramaturgo foi a Bogotá para ministrar oficinas e seminários, na Universidade Nacional da Colômbia e no grupo La Maldita Vanidad. Acabou por se encantar pelo trabalho de um dos alunos, o ator Wilderman García Buitrago, e decidiu escrever um monólogo para ele.
“Havia uma moto sempre estacionada ao lado do lugar onde a gente se encontrava, e eu disse ‘vamos fazer uma obra que tenha você e a moto’”, explica Blanco, que faz do veículo e de um poste de luz os únicos elementos do cenário de “Tráfico”.
As referências à realidade não são à toa. Blanco é um dos expoentes da chamada autoficção, mesclando sua própria biografia à história da peça. Aqui ele é um professor universitário e cliente de Alex. Também é
chamado Sergio Blanco, mas foi apelidado pelo garoto de programa de “o francês” —referência à dupla nacionalidade do dramaturgo.
À primeira vista, o autor surge menos presente que em obras como “A Ira de Narciso” e “O Bramido de Düsseldorf”, nos quais os protagonistas levavam seu nome e sua profissão e passavam por situações de fato vividas pelo franco-uruguaio. Mas, segundo Blanco, “‘Tráfico’ é o espetáculo em que mais me desnudo, mais me exponho e mostro um lado mais monstruoso”.
Ainda que não apareça em cena, apenas na narração de Alex, é “o francês” quem induz o rapaz ao sicariato, quem traça seu destino trágico. Alex questiona Blanco a todo tempo, rebate a maneira como guia a vida do protagonista. Uma relação semelhante à que as figuras de “Seis Personagens à Procura de um Autor” têm com seu dramaturgo, o italiano Luigi Pirandello.
E também uma alusão ao que o pintor flamengo Jan van Eyck cria em seu quadro “A Virgem do Chanceler Rolin”. Num primeiro plano, vemos a virgem e o menino Jesus. Mas ao fundo o artista pinta a si mesmo, pequenino.
“É um plano secundário e distante, mas é um plano central. E sempre pensei que nesta peça eu seria como a figura de Van Eyck. Eu não sou o protagonista, mas estou no eixo central do quadro”, diz Blanco, que vê a autoficção não como um gênero ególatra, mas uma maneira de questionar os limites entre verdade e mentira.
De fato, o diretor e dramaturgo não trata de extremos. Seu Alex, diz, é como um Macbeth, personagem shakespeariano que comete atrocidades para ascender ao poder.
“Macbeth é monstruoso, mas todos nos fascinamos por ele. Temos um vício, queremos saber qual o próximo personagem que ele vai matar. E, de alguma maneira, ‘Tráfico’ questiona como o horror tem beleza e pode nos fascinar. É essa flor do mal.”
“Neste momento em que estamos voltando ao maniqueísmo, é importante que apareçam escritas que
demonstrem quão complexo é o mundo, que uma coisa não é apenas azul ou rosa”, diz Blanco, em referência à fala da ministra Damares Alves, da nova pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, de que meninos devem usar azul, e meninas, rosa.
“É uma coisa tão violenta o que disse essa senhora. Me doeu tanto ouvir isso. Não pela cor, mas pelo maniqueísmo, vítima de uma ortodoxia evangelista muito reacionária. Que desconhecimento da variedade de cores, não?”
A jornalista viajou a convite do Festival de Teatro de Curitiba.
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